segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Jesus Histórico II

Fontes da Pesquisa do Jesus Histórico

D.F.Izidro


         Toda e qualquer pesquisa histórica se funda, basicamente, sobre fontes e critérios e/ou métodos de investigação;é a heurística da fonte ou fontes que determina outras questões mais na pesquisa histórica tais como objeto,problema e critérios de estudo do evento histórico.

         Na pesquisa histórica de Jesus não há exceção à regra, a questão e discussão em torno das fontes e crítérios para reconstrução historiográfica de Jesus não é novidade,antes sempre fez e faz parte da pesquisa.

         Que fontes e que critérios metodológicos são e/ou devem ser utilizados hoje na investigação histórica de Jesus são o tema e conteúdo de nossa aula. Nessa postagem,trataremos das referidas fontes utilizadas na pesquisa histórica de Jesus.

1. FONTES CRISTÃS

1.1. Novo Testamento (Evangelhos)

         Os Evangelhos do NT são nossas fontes mais antigas e mais completas acerca de Jesus de Nazaré, contudo não sem problemas para o historiador.

         Não obstante pretenda se fundar na história de Jesus, a narrativa evangélica a seu respeito é colorida teologicamente, de modo a tornar a distinção entre história e teologia nos Evangelhos sinóticos uma complexa tarefa para o historiador.

         O Evangelho de João é cogitado como o mais problemático por alguns pesquisadores no quesito historicidade, devido seu caráter fortemente teológico e distinto em relação aos sinóticos, Evangelhos mais antigos.

         Não obstante, o preconceito quanto ao potencial histórico de João na pesquisa do Jesus Histórico tem podido ser vencida.

         Quanto às origens dos Sinóticos, a hipótese mais divulgada e amplamente aceita entre os historiadores é a chamada Hipótese das Duas ou Quatro Fontes:

1.      Marcos, sendo o Evangelho mais antigo, foi utilizado como fonte por Mateus e Lucas, o que justificaria a tradição evangélica tríplice;
2.      Não obstante, para a tradição evangélica comum apenas à Mateus e Lucas se postulou a existência de uma segunda fonte paralela à Marcos – a fonte Q;
3.      Para explicar ainda a existência de material evangélico exclusivo à Mateus e à Lucas,se elaborou também a Hipótese das fontes M e L, respectivamente.

         A Hipótese das Duas ou Quatro Fontes é amplamente utilizada no manuseio crítico-histórico dos Evangelhos sinóticos na pesquisa histórica de Jesus.

         A questão das fontes de João têm suas próprias idiossincrasias, contudo se aceita de forma geral que ele seja independente dos Sinóticos.

         Quanto à cronologia de Mateus, Marcos, Lucas e João têm havido muito debate e discussão.

         A maior parte dos historiadores de Jesus se utiliza dos Evangelhos sob o pressuposto cronológico de que foram redigidos entre 70-100 d.C.

         Não obstante, o debate sobre a datação desses escritos tende recuá-los.

1.2. Novo Testamento (Literatura Paulina)

         À parte os Evangelhos canônicos,não há no NT muito material de potencial histórico sobre Jesus,senão em algumas poucas passagens das epístolas Paulinas e de outros escritos.

         Especificamente em Paulo, há referências às palavras de Jesus e ao seu ministério terreno (ICo.7.10,11; 9.14; ITs.4.15; ICo.11.23-25;15.3),bem como à origem e missão judaica de Jesus (Rm.1.3;15.8).

         Os dados paulinos,contudo,não acrescentam nada ao que a tradição sinótica já informara sobre Jesus.

         O livro de Hebreus faz clara referência ao evento evangélico do Getsêmane (Hb. 5.7-8;Mc.14.32-42 par.).

         Além de outros paralelos entre suas exortações e o Sermão do Monte (Mt.5-7), destaca-se também a relação de Tiago 5.12 com o respectivo dito de Jesus (Mt.5.34-37).

         O material extraevangélico do NT, além de escasso,não acresce à tradição evangélica.

1.3. AGRAPHA

         Os ágrafos ou agrapha são literalmente “palavras não escritas” de Jesus nos Evangelhos do NT.

         Trata-se de supostos ditos de Jesus como se encontram nos Pais da Igreja,nos Apócrifos do NT,em variações de manuscritos e até mesmo em textos islâmicos.

         Um dos maiores “garimpeiros” em busca de ditos autênticos de Jesus fora do NT foi,sem dúvida,Joaquim Jeremias.

         Não obstante Jeremias tenha selecionado dezoito ditos que poderiam ser de Jesus,o mesmo admite o caráter fictício,fabuloso e legendário desses agrapha de Jesus.

         Estudiosos como John Meier são totalmente pessimistas quanto à contribuição desses agrapha à pesquisa do Jesus Histórico,pois,afora sua natureza legendária e fantasiosa,esses supostos ditos de Jesus repetem ou nada acrescem à tradição evangélica canônica.

1.4. EVANGELHOS APÓCRIFOS

         Os Evangelhos Apócrifos 1) datam do II ao V d.C.;2) seu conteúdo é jesuíno – palavras e atos de Jesus ou apenas seus ditos;3) nem todos se assemelham formalmente aos Evangelhos do NT;4) sua natureza geralmente é legendária e fantasiosa;5) são geralmente re-elaborações dos Evangelhos do NT;6) não foram aceitos como canônicos pelo cristianismo antigo.

         Não obstante a própria datação tardia dos Evangelhos Apócrifos,surgidos apenas no II século d.C.,portanto,bastante distantes do tempo de Jesus,alguns estudiosos julgam não apenas serem eles fontes úteis para a pesquisa do Jesus Histórico,mas sendo alguns até mais antigos,mais primitivos,e,portanto,mais confiáveis que os Evangelhos do NT,tendo servido mesmo de fonte para a redação destes últimos.

         Depois que o estudioso Quispel, e, também Helmut Koester,consideraram o Evangelho de Tomé independente dos Evangelhos canônicos e anterior a eles, historiadores como John Dominic Crossan passaram a considerar Evangelhos apócrifos como o Evangelho de Pedro,o Evangelho Secreto de Marcos e outros como sendo textos primitivos ou tendo sido montados com base em tradições mais antigas.

         John Dominic Crossan, assim como Morton Smith se valem desses Evangelhos Apócrifos em sua reconstrução histórica de Jesus – Jesus, filósofo cínico e Jesus, mago homossexual,respectivamente.

         Tais reconstruções históricas de Jesus com base no uso acrítico dessas fontes ulteriores são questionáveis pela natureza, datação e abordagem das mesmas.

         John P.Meier considera praticamente inútil a pesquisa do Jesus Histórico a partir dos Evangelhos Apócrifos,pois 1) além de sua datação tardia,eles 2) não costumam acrescentar nada de novo à tradição evangélica do NT – dependem deles e/ou são re-elaborações deles.

         Essa discussão sobre a utilização dos escritos apócrifos na pesquisa do Jesus Histórico, inclusive a Biblioteca de Nag Hammadi,segue,pois alguns estudiosos acham que,não obstante serem tardios,podem possuir tradições que remontam à época de Jesus;enquanto outros acham que eles nos falam mais sobre o cristianismo do II d.C. do que sobre o Jesus Histórico.

2. FONTES NÃO-CRISTÃS

2.1. FLAVIO JOSEFO

         A primeira e única referência histórica não-cristã a Jesus de Nazaré no final do I d.C, encontra-se na obra do Historiador Judeu Josef ben Matias,Antiguidades Judaicas, mais conhecido como Flavio Josefo.

         Há duas referências, consideradas autênticas pelos modernos historiadores, à pessoa de Jesus nessa obra de Josefo: 1) uma referindo-se a Jesus como irmão de Tiago; e 2) outra mais extensa descrevendo Jesus e seu movimento;

Testimonium Flavianum (Ant 18.63-64)
[Sem as interpolações cristãs por John Meier]
Minha tradução do Grego

Nesse tempo viveu Jesus,um homem sábio.Ele era feitor de obras extraordinárias, Mestre dos homens que aceitam a verdade com prazer.    Ele atraiu tanto judeus quanto gregos. E mesmo tendo sido condenado por Pilatos à cruz,com provas dos principais homens que vivem entre nós,não o abandonaram os que primeiro lhe tinham amado.    Até hoje o povo dos cristãos,como foram nomeados, não desapareceu.

         A primeira menção de Jesus em Josefo, na verdade tem haver com Tiago, o qual é designado como “irmão de Jesus,chamado Cristo” [ ton adelfon Ihsou tou legomenou Cristou].

         Embora não acresça nada à tradição evangélica canônica, pelo menos a confirma em vários pontos.

         Não há dúvidas sobre a autenticidade dessa referência indireta de Josefo à pessoa de Jesus de Nazaré.

         A segunda menção de Josefo a Jesus em sua obra é mais extensa, trata-se do Testimonium Flavianum.

         Essa referência mais extensa e direta de Josefo a Jesus não chegou a nós sem interpolações cristãs, já apontadas por vários estudiosos.

         Contudo, removidas as interpolações cristãs o testemunho de Josefo nesse ponto também confirma a veracidade histórica dos Evangelhos do NT.

         Não obstante as referências autênticas de Flavio Josefo à Jesus não acrescentem nada à tradição evangélica,elas atestam não só a historicidade dos Evangelhos do NT,mas também a pessoa de Jesus de Nazaré como personagem perfeita e indubitavelmente histórico.

         As obras de Flávio Josefo também têm sido muito úteis na reconstrução do mundo de Jesus.

2.2. AUTORES GRECO-ROMANOS

         Depois de Flávio Josefo, em 93-94 d.C.,a segunda única referência histórica não-cristã à pessoa de Jesus,desta vez no início do II século,pertence ao historiador romano Tácito (56/57-118 d.C.).

         Por ocasião de sua referência ao incêndio de Roma e a suposta culpa de Nero nisso, Tácito faz menção dos cristãos,perseguidos por esse Imperador,e de Cristo,em seus Anais.

Tácito (Anais 15.44)

“Assim, para fazer calar o rumor,Nero criou bodes Expiatórios e submeteu ás torturas mais refinadas aqueles que o povo chamava de “cristãos”,[um grupo] odiado por seus crimes abomináveis. Seu nome deriva de Cristo,que,durante o reinado de Tibério,tinha sido executado pelo procurador Pôncio Pilatos.Sufocada por um tempo,a superstição mortal irrompeu novamente,não apenas na Judéia,terra onde se originou este mal,mas também na cidade de Roma,onde todos os tipos de práticas horrendas e infames de todas as partes do mundo se concentram e são fervorosamente cultivadas.”

         Tácito, assim como Josefo,não acrescenta,praticamente,nada de novo à tradição evangélica canônica,contudo ambos são as mais antigas atestações históricas não-cristãs provavelmente independentes da pessoa de Jesus,sua obra e fim da vida.

         Fica óbvio também que Tácito também confirma o relato evangélico do NT em vários pontos.

         Plínio, o jovem, Suetônio e mesmo Luciano de Samosata,em suas esparsas referências aos cristãos,mais têm a nos dizer sobre o cristianismo primitivo em sua polêmica e perseguição do que sobre o Jesus Histórico,pois não são fontes históricas independentes das anteriormente descritas a respeito do Jesus Histórico.


         Suetônio fala sobre a celeuma entre judeus e judeus-cristãos instigada por um tal de “Chrestos” [crhstoV],isto é,”Christós” [cristoV], na sinagoga de Roma e que resultou na expulsão dos judeus da cidade por volta de 40-50 d.C.
        
         Plínio,o jovem (c.111-113 d.C.),em sua carta à Trajano,faz menção aos cristãos e seu objeto de adoração,Cristo.

         Luciano de Samosata (115-200) fala dos cristãos como quem adoram um homem crucificado na Palestina por ter introduzido alí essa forma de religião.

         Portanto, dos antigos autores greco-romanos,a única fonte provavelmente independente e por isso mais importante sobre a pessoa histórica de Jesus é Tácito,historiador e político romano.

2.3. LITERATURA QUMRÂNICA

         Os manuscritos descobertos nas 11 cavernas de Qumrân, no deserto da Judéia, entre 1947-1956, contendo cópias da bíblia hebraica,textos apócrifos do AT e literatura essênica, em hebraico,aramaico e grego,têm sido apontadas como fontes importantes para a pesquisa do Jesus Histórico.

         Inicialmente se cogitou a ligação direta desses manuscritos e seita com Jesus e/João batista ou mesmo com o paleocristianismo.

         Não obstante, hoje se aceita de forma geral entre os pesquisadores o valor histórico desses manuscritos no levantamento do pano-de-fundo judaico de Jesus.

         A visão monocromática que tínhamos do judaísmo palestinense do século I d.C. foi revisada e a pessoa de Jesus foi reinserida em seu ambiente tipicamente judaico – redescobriu-se Jesus como Judeu, não Cristão.

         Como há referido em outro post,há uma série de paralelos entre Jesus e Qumrân,dentre os quais destacamos os que seguem:

(1) Jesus e Qumrân foram,ambos,críticos da avareza e opressão do Templo (Mc.12:38-13:2; 1QpHab 8:11-12; 9:4-5; 10:1);
(2) Jesus e Qumrân interpretaram Gn.1.27 de modo a proibir o divórcio e novo-casamento (Mt.19:4;Mc.10:6;CD 4:20-5:2);
(3) Jesus e Qumrân falaram de “ofertas” em termos espirituais,em oposição ao mero sacrifício animal literal (Mt 9:13;12:7;cf.Os 6:6;Mc.12:28-34;cf.Philo, Good Person 12 §75;Josephus, Ant.18.1.5 §19; e possivelmente 4Q174 1 i 6 – 7;cf.Rm.12.1);
(4) 4Q525 apresenta uma lista de bem-aventuranças com surpreendentes paralelos à lista de bem-aventuranças atribuída a Jesus em Mateus 5 (3-12) e Lucas 6 (20-23); Dísticos de bem-aventuranças são atestados nas Escrituras de Israel e nos escritos judaicos da Antiguidade tardia (e.g.Sl.32.1-2;84.4-5;119.1-2;Sir.14.1-2;25.8-9;Tb.13.13-14),mas só com a descoberta do 4Q525 pudemos ter um texto judaico,fora os próprios Evangelhos,que preserva uma lista de bem-aventuranças,como segue:

         [Bem-aventurado é aquele que...]tem um coração puro e não difama com a sua língua.
         Bem-aventurados são aqueles que se apegam aos seus estatutos e não às formas de injustiça.
         Bem-a[venturados] são aqueles que se regozijam nela,e não irrompem por caminhos de loucura.
         Bem-aventurados são aqueles que a buscam com mãos limpas,e não com um coração enganoso.
         Bem-aventurado é o homem que alcança sabedoria,e anda na lei do altíssimo...

(5) Os Cânticos do Sacrifício Sabático referem-se com freqüência ao “reino de Deus” (“teu reino”;“seu reino”,e similares),atestando a concepção corrente pressuposta por Jesus ao termo – governo de Deus;
(6) O relato de exaltação no 4Q491c, em
que o falante apresenta-se como instalado no céu entre os anjos, podia
lançar luz sobre a notável resposta de Jesus ao sumo sacerdote,onde diz que estaria sentado à destra de Deus como "Filho do Homem” (cf. Mc. 14.61-62).

2.4. LITERATURA RABÍNICA

         Existem supostas menções à Jesus na literatura rabínica (Mishná,Tosefta,Talmudes) bastante disputadas entre os historiadores.

         Como se isso não bastasse a datação desses escritos em relação à época do Jesus Histórico também é bastante desfavorável (200-500 d.C.).

         De fato, o valor e a contribuição direta dessa literatura,portanto,no estudo histórico da pessoa de Jesus é bastante controvertido entre os pesquisadores.

         Não obstante, se for possível autenticar algumas supostas menções da literatura rabínica à pessoa de Jesus de Nazaré,isso não contribuiria para o estudo de sua pessoa senão apenas para a pesquisa do cristianismo primitivo em sua polêmica com o judaísmo,pois seus dados são fictícios e agressivos em relação ao cristianismo,e na melhor das hipóteses apenas repetem a tradição evangélica.

         O estudioso judeu da literatura rabínica Klausner trata da provável relação de Jesus de Nazaré com o caso, relatado em textos rabínicos,de um tal Ben Pandera.

         Ben Pandera seria um soldado romano com quem uma judia teria tido relações sexuais ilícitas.

         Um relato semelhante, mas aplicado à maria,mãe de Jesus,consta na crítica de Celso ao cristianismo no final do II século d.C.

         John Meier acredita que essa história deve ter se originado de uma interpretação crítica da concepção virginal de Jesus em Mateus e Lucas dentro do contexto de polêmica entre judeus e cristãos no II século d.C.

         O fato é que, mesmo que determinados textos rabínicos se refiram de fato a Jesus,o modo como o fazem e o que dizem,fazem deles fonte apenas para estudos da polêmica judaico-cristã.

         John P.Meier,um dos maiores historiadores do Jesus Histórico e crítico dessa pesquisa conclui que as principais e mais antigas fontes para a pesquisa do Jesus Histórico são,em ordem de importância: 1) os quatro Evangelhos canônicos; 2) fragmentos do NT, especialmente paulinos; 3) Flavio Josefo; e 3) Tácito,se for de fato uma fonte independente.



[1] Bibliografia: MEIER,J.P.Un Judío Marginal:Nueva Visión del Jesús Histórico.Tomo I.Pamplona (Navarra):Editorial Verbo Divino,1998; SCHWEITZER, Albert.A Busca do Jesus Histórico.São Paulo: Novo Século, 2003; THEISSEN, G.; MERZ,A.El Jesus Historico:Manual.Ediciones Sigueme, Salamanca: 1999; EVANS, C.A.Assessing Progress in the Third Quest of the Historical Jesus.Acadia Divinity College, Wolfville, NS, Canadá.Disponível em www.craigaevans.com. Acesso em 25 de julho de 2009.

 












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