sexta-feira, 19 de abril de 2013


Introdução à Crítica Textual do Novo Testamento

D.F.Izidro


Dedico este pequeno texto de introdução à Crítica Textual, ao meu aluno sofisticadamente curioso e impressionantemente inteligente Rafael Nunes do Seminário Arquidiocesano Redemptoris Mater, o qual me inspirou a postar essa composição elementar sobre o assunto.


1. Definição

1.1. Primeira Definição

A Crítica Textual é a ciência que procura restabelecer o texto original de um trabalho escrito cujo autógrafo1 não mais exista. Nos meios seculares, também é conhecida como ecdótica2 e não está relacionada, em sua aplicação, apenas ao Novo Testamento, sendo extensível a qualquer peça literária cujo texto original tenha sido eventualmente alterado no processo de cópia e recópia, sobretudo antes da invenção da imprensa no século XV.

1.2. Segunda Definição

A Crítica Textual pode se definir através de seu principal objetivo – reconstruir o texto original. De fato, o objetivo da Crítica Textual é a reconstrução do texto, exatamente como ele era no tempo em que os livros bíblicos adquiriram sua forma literária final, antes de serem introduzidos no cânon. A Crítica Textual é necessária se quisermos chegar com segurança ao texto original. Portanto, qualquer explicação científica do texto deve começar com o cuidado em determinar o texto autógrafo ou original.

1.3. Terceira Definição

Definimos a Crítica Textual pela seguinte descrição de sua Tarefa:
  1. Constatar as diferenças entre os diversos manuscritos que contêm cópias do texto da exegese;
  2. Avaliar qual das variantes poderia corresponder com maior probabilidade ao texto originalmente escrito pelo autor bíblico.

2. Contribuições da Crítica Textual

Dela dependem todas as demais ciências bíblicas que corporalizam a religião cristã, pois lança os fundamentos sobre os quais toda e qualquer investigação bíblica deva ser construída. Sem um texto grego fidedigno, tão mais próximo do original quanto possível, não há como se fazer confiável crítica histórica ou literária, exegese, teologia, nem mesmo sermão, para não falar em tradução. Consiste num pré-requisito para todos os outros trabalhos bíblicos e teológicos, sustenta J. Harold Greenlee.
Além de nos fornecer uma reconstrução do texto bíblico original, sem o qual não podemos realizar nenhum tipo de trabalho bíblico, ou mesmo fundamentar nossa fé, a Crítica Textual também nos ajuda na investigação e estudo das comunidades cristãs primitivas no que diz respeito à sua fé, teologias, controvérsias e o modo como lidou com o texto bíblico, através do estudo das correções textuais feitas pelos copistas e da história de transmissão do texto em suas mais diversificadas regiões geográficas, tais como Alexandria, Roma, Antioquia, Cesareia, etc. A Crítica Textual, portanto, pode mostrar em vários versículos isolados, o início do processo de interpretação destes textos, exatamente pelas alterações que os copistas introduziram durante a cópia dos manuscritos.
  1. O Procedimento de Crítica Textual

Quanto ao material com que trabalham os críticos textuais, este inclui, no caso específico do NT, não somente as cópias manuscritas dos livros apostólicos na língua original, o grego, mas também antigas versões, bem como citações de passagens bíblicas de antigos escritores. A prática da Crítica Textual, portanto, exige um conhecimento especializado dos diferentes manuscritos e das respectivas famílias textuais, conhecimento da paleografia grega e do cânon crítico3, além do vocabulário e da teologia do autor cujo livro se examina.
Para o desempenho de tal labor crítico-exegético, o exegeta deve fazer uso das edições críticas do Antigo e Novo Testamentos nas línguas originais. Estas edições críticas do Antigo e Novo Testamento indicam, mediante um aparato de notas de rodapé, as principais leituras variantes para um mesmo texto bíblico que aparecem nos diferentes manuscritos.
As edições críticas geralmente utilizadas são:

Para o Antigo Testamento:

  • Texto Massorético (TM) – ELLIGER,K.;RUDOLF,W.Bíblia Hebraica Stuttgartensia;

Para o Novo Testamento:

  • Nestlé,E.& Aland,K.Novum Testamentum Graece;
  • UNITED BIBLE SOCIETIES, The Greek New Testament.
  • Editio Critica Maior4

    1. Critérios à Crítica Textual

A fim de reconstruirmos a leitura original do texto bíblico, precisamos partir de uma análise que leve em consideração aspectos Externos e Internos. A crítica Externa toma em consideração o aspecto físico dos manuscritos: quantidade, qualidade, datação. Por sua vez, a crítica Interna analisa o texto propriamente dito: articulação das idéias, uso das palavras, estilo, teologia. Cada uma dessas críticas, portanto, possui seus próprios requisitos.

  • São critérios da Crítica Externa:

  1. Múltipla Atestação (quantidade de testemunhos manuscritos)
  2. Antiguidade dos Mss. (datação)
  3. Qualidade e Confiabilidade (tipo textual do Ms.)

  • São critérios da Crítica Interna:

  1. A leitura mais difícil é preferível à mais fácil
  2. A leitura mais breve é preferível à mais longa
  3. Estilo e teologia do autor
Algumas questões metodológicas também podem ser feitas com o intuito de analisar a leitura variante em questão:

    1. Qual leitura faz mais sentido?
    2. Qual é apoiada pelos manuscritos mais antigos?
    3. Qual é encontrada em manuscritos no maior número de áreas geográficas?
    4. Qual foi mais usada pelos tradutores antigos?
    5. Qual é mais citada pelos pais da igreja?
    6. Qual leitura se harmoniza melhor com o estilo e teologia do autor?
    7. Qual leitura explica melhor a origem das demais?



  1. Exercício de Crítica Textual

Crítica Textual de Atos dos Apóstolos 10.19
(Preliminar)
D.F.Izidro

1ª LEITURA VARIANTE – () 

  1. Evidência Externa

    1. Papirus: p74
    2. Unciais: A C E
    3. Minúsculos: 33 36 81 181 307 453 610 945 1175 1409 1678 1739 1891 2344
    4. Lecionários: l1178
    5. Versões: itar,c,dem,e,gig,p2,ph,ro,w vg syrp,hmg copsa,bo,meg eth geo
    6. Pais: Didymusdub; Virgilius

  • Nota: Esta leitura possui uma boa e ampla atestação manuscrita na tradição textual do NT, nos seis tipos de fontes manuscritas do mesmo. Os papiros, unciais (exceção do E) e alguns minúsculos pertencem ao tipo de texto Alexandrino – considerado o melhor tipo textual do NT. As versões e citações patrísticas são do IV e V séculos d.C. Os unciais também são desta data. O único papiro que atesta esta leitura é do sétimo século.
  • Do ponto de vista da evidência meramente externa ou manuscrita, esta leitura seria muito provavelmente a leitura original do texto.5


  1. Evidência Interna

    1. Esta leitura se “harmoniza” com dados do próprio livro (cf.At.11.11;10.7).
    2. O uso do binômio substantivo-numeral e numeral-substantivo é comum no livro de Atos (e em Lucas).
    3. Na redação de Atos é comum o relato do autor se conformar com o relato de personagens sobre o mesmo evento (cf.At.9,22,26, sobre o relato da conversão de Paulo); de modo que o dado de 11.11 deve confirmar assim a leitura de 10.19.
    4. Não obstante, esta leitura () não é idêntica ao texto de 11.11 ().
    5. Deve-se acrescentar ainda que esta leitura () não explica as demais variantes, isto é, o que levara um copista a, mesmo diante de 11.11 e 10.7, mudar o texto para outra forma (como “dois homens” ou “alguns homens”).
    6. Além do mais, esta leitura variante () pode ser resultado de uma “harmonização” do copista diante das informações de 11.11 e 10.7. Expediente muito comum entre os copistas.

  1. Conclusão

  • Os problemas levantados pela evidência interna põem em dúvida a originalidade desta leitura, mesmo diante de tão boa atestação manuscrita.


2ª LEITURA VARIANTE - () 

  1. Evidência Externa

    1. Unciais: B

  • Nota: Esta leitura é atestada por um único manuscrito antigo, o Códex Vaticanus. Embora seja o único testemunho em favor desta leitura, este data do IV século E.C. e pertence a um dos melhores tipos de texto, o texto Alexandrino, o qual remonta ao fim do século I e começo do II E.C.

  1. Evidência Interna

    1. O uso do binômio substantivo-numeral e numeral-substantivo é comum no livro de Atos (e em Lucas).
    2. Esta leitura é de fato a mais difícil de todas e, desta forma, explica a primeira variante textual () como sendo uma correção do copista em relação à mesma.
    3. Contudo, esta leitura ( ) não condiz com a conformidade típica dos relatos do autor com a versão de seus personagens sobre um mesmo evento. Sem falar que pode ser até uma contradição contextual em relação à 11.11.
    4. Esta leitura também não explica a variante que omite o numeral, isto é, “alguns homens” (). Porque mudaria o copista de “dois homens” para “alguns homens”, mesmo diante da informação de 11.11?

  1. Conclusão

  • A evidência externa pequena, não obstante significativa, desta leitura e os problemas de evidência interna levantados nos levam a concluir pela provável não originalidade desta lição textual.


3ª VARIANTE TEXTUAL – ()omissão

  1. Evidência Externa

    1. Unciais: D Y
    2. Minúsculos: 614
    3. Bizantinos: Byz [L P]
    4. Lecionários: l597
    5. Versões: itd,l,p* syrh slav
    6. Pais: Apostolic Constitutions Chrysostom; Ambrose Augustine Speculum Cassiodorus

  • Nota: Embora não sejam tão antigos (V e IX/X), estes unciais pertencem ao tipo de texto Ocidental e Alexandrino, respectivamente. O minúsculo é bastante recente (XIII). Os dois bizantinos são ambos do IX século. O lecionário data do século X e as versões entre o V e IX séculos. As citações patrísticas são do IV século.

  1. Evidência Interna

    1. O autor também tem por expediente estilístico o uso de substantivos anartros e sem adjetivos ou pronomes indefinidos para dar acepção indefinida, isto é, como em “alguns homens”.
    2. Esta leitura explicaria as outras duas leituras como uma glossa que se tornou depois parte do texto – equívoco comum entre os copistas. A primeira glossa pode ter se originado do dado de 11.11, e a segunda de uma provável interpretação de 10.7. Ambas devem ter sido independentemente glossadas à margem do texto como uma nota explicativa, mas que posteriormente deve ter sido entendida como uma correção.
    3. Esta leitura não contradiz nem o estilo típico do autor, nem as informações contextuais do contexto (11.11;10.7).
    4. Estudos de interpolação e variantes textuais em manuscritos antigos mostram que a tendência dos copistas era mais para a ampliação dos textos do que para a supressão de partes deles. Os copistas acrescentam mais do que suprimem.

  1. Conclusão

  • Diante destes fatos, não obstante o significativo peso da evidência Externa em relação à primeira leitura, mas dando maior atenção a outros aspectos também relevantes do texto (especialmente funcionais e sincrônicos), a leitura mais provável deve ser essa última, pois se harmoniza melhor com o estilo do autor, a literatura como um todo e ao que era típico nos expedientes revisionistas dos primeiros copistas.



BIBLIOGRAFIA

PAROSCH,Wilson. Crítica textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993.
Schnelle,Udo. Introdução à Exegese do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2004.
Silva,Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas,1998.
WEGNER,Uwe. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia.São Paulo: Sinodal/Paulus,2002.
WOLFF, H.W. Bíblia Antigo Testamento – Introdução aos Escritos e aos Métodos de Estudo. São Paulo: Paulinas,1978.


1 Autógrafo: termo técnico que designa o manuscrito original de uma obra.

2 Ecdótica: termo introduzido na ciência literária por D.Henri Quentin, em sua obra Essais de Critique Textuelle: Ecdotique, publicada em Paris em 1926.

3 Cânon crítico: certos critérios científicos estabelecidos pelos críticos textuais para propiciar uma escolha inteligente entre dois ou mais textos divergentes.

4 Desde 1997 está sendo publicada a Editio Critica Maior do Novo Testamento grego (ed. por B.Aland, K.Aland , G.Mink, K.Wachtel). Este novo texto tem por objetivo oferecer todo o material da história textual de um escrito do Novo Testamento. O seu primeiro exemplar abrange o texto de Tiago.

5 Não obstante, tal atestação pode estar equivocada, pois alguns textos antigos já apresentaram bastante corrupção.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Teologia do Novo Testamento: Definição e Problema

D.F.Izidro


1. Definição de Teologia do Novo Testamento
 
          Segundo George Eldon Ladd,

“ A teologia bíblica é a disciplina que estrutura a mensagem dos livros da Bíblia em seu ambiente formativo histórico. A teologia bíblica é basicamente uma disciplina descritiva, cuja abrangência não busca primeiramente o significado final dos ensinos da Bíblia, ou sua relevância para os dias atuais, uma tarefa da teologia sistemática. A tarefa da teologia bíblica é expor a teologia encontrada na Bíblia em seu contexto histórico, com seus principais termos, categorias e formas de pensamento.”[1]
          A Teologia do Novo Testamento, portanto, faz parte da grande área da Teologia Bíblica. Trata-se da descrição exegético-histórica do conteúdo teológico dos escritos neotestamentários cada qual em sua própria particularidade e com suas próprias categorias e definições.
          A Teologia do Novo Testamento, pois, é uma disciplina de natureza histórica e exegética, embora não possa abstrair da teologia.

2.      O Problema da Teologia do Novo Testamento

          Para alguns estudiosos contemporâneos, a Teologia do Novo Testamento está em crise, pois não há entre as obras dos pesquisadores mais recentes concordância quanto a natureza, método e objetivo da teologia do NT. Norman Perrin fala de “confusão” no estudo da teologia neotestamentária;[2] há consenso entre os pesquisadores de que a teologia do NT é um ponto crucial no debate teológico atual.
          Muitos dos problemas básicos estão relacionados, por exemplo, ao lugar de Jesus na teologia do NT. Se por um lado, Rudolf Bultmann entende que “a mensagem de Jesus é mais uma pressuposição para a teologia do NT do que uma parte da teologia em si”[3], por outro lado Joachim Jeremias trata da mensagem de Jesus em todo seu primeiro volume da Teologia do Novo Testamento.[4] Para o estudioso britânico S. Neill, “Toda teologia do Novo Testamento tem que ser uma teologia de Jesus ou não é absolutamente nada”.[5] As divergências escondem problemas de natureza histórica, teológica, filosófica e metodológica nas abordagens à teologia do NT apresentada por muitos estudiosos.
          Não obstante, de forma mais geral, as controvérsias acadêmicas em torno da teologia do NT dizem respeito aos seguintes itens: (1) Metodologia; (2) A questão do Centro Unificador do NT/ Unidade e Diversidade no NT; e (3) O relacionamento entre AT e NT.
          Segundo estudiosos como Werner Georg Kümmel[6], a pergunta pela teologia do NT confronta-nos com a questão da unidade do NT diante da pluralidade de vozes teológicas que há nele. A diversidade do Novo Testamento fora sentida desde a Reforma, pelo próprio Lutero quando da tradução do Novo Testamento em Wartburg (1521/1522), o qual expressou tal descoberta no prefácio de sua tradução em 1522.
          Mas essa pluralidade no testemunho da fé neotestamentária foi ignorada na Igreja Protestante devido o conceito de Autoridade das Sagradas Escrituras. Foi com o advento do Iluminismo no século XVIII, que o conteúdo teológico do NT foi exposto como uma grandeza histórica autônoma, respeitando-se a peculiaridade histórica e doutrinária de cada um de seus escritos separadamente. A Bíblia, então, passou a ser estudada livre dos laços dogmáticos da Igreja e com o auxílio dos métodos da ciência histórica. Logo que a peculiaridade e diversidade do conteúdo teológico da Bíblia foi descoberta, a exposição do AT e NT foi totalmente diferenciada. As diferenças dentro de cada Testamento foram aventadas bem como as possibilidades de seu eventual desenvolvimento.
          Desde o início, portanto, o estudo da pesquisa do NT se viu diante do problema da unidade e diversidade de seus testemunhos. Além disso, a impossibilidade de uma Unidade no NT tornou também impossível a existência de uma Teologia Sistemática com base nele.
          O que Lutero havia observado em alguns exemplos isolados, a pesquisa científica histórica evidenciou no século XIX: Há no NT uma pluralidade de vozes que por vezes parecem se contradizer e/ou se manifestam de modos tão diferentes que não podem passar ao largo de um exame crítico e criterioso.
          A difícil tarefa da teologia do NT, portanto, consiste em permitir que cada escrito, ou grupo de escritos, manifeste seu testemunho, para que depois disso, então, possamos perguntar pelo que há em comum entre esses testemunhos, bem como constatar as diferenças que não podem ser superadas.
          Esse estudo, porém, é bastante dificultado pela discordância que há entre os estudiosos quanto a determinação exata das condições históricas em que surgiram esses escritos.
          O resultado dessas dificuldades consiste nas várias e diversificadas abordagens metodológicas e pressuposições sobre a natureza e significado da Teologia do NT.




[1]    LADD,G.E.Teologia do NT,pg.38.
[2]    N.PERRIN,Jesus and the Theology of the New Testament,Catholical Biblical Association,Colo.,18 a 21 de agosto,1975.
[3]    R.BULTMANN,Theology of the New Testament,Londres,1965,I,p.3.
[4]    J.JEREMIAS,NT Theology:The Proclamation of Jesus (1971).
[5]    NEILL,Jesus Through Many Eyes,p.10.
[6]    KUMMEL,W.G.Síntese Teológica do Novo Testamento,pgs.29ss.