quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Série Como Interpretar a Sagrada Escritura I

Hermenêutica e Exegese:

Definições e Metodologia

D.F.Izidro

         Termos oriundos da Teologia Exegética, campo da teologia que trata dos processos de interpretação bíblica, a Hermenêutica e a Exegese têm muitas vezes gerado alguma confusão ou mesmo variação quanto aos seus significados e métodos. Queremos demonstrar, portanto, através deste texto que, embora inter-relacionadas, a Hermenêutica e a Exegese têm definições e papeis diferentes no campo da interpretação bíblica, pelo menos na concepção de muitos autores. Queremos também indicar a natureza e os métodos utilizados nestas duas áreas da teologia exegética.

1. A Hermenêutica

1.1. Definição

         O que significa Hermenêutica? E a que está relacionada? A palavra Hermenêutica vem do grego ermeneutike, que por sua vez procede dos verbos ermeneuein e ermeneuo, e significa simplesmente Interpretar, explicar, traduzir. Esse vocábulo grego é muitas vezes usado em o Novo Testamento, em passagens como Lc. 24.27; Jo.1.38,42; ICo.12.10; 14.26.

         Conforme os anais da história, Platão, o famoso filósofo da Grécia antiga, foi o primeiro a empregar a palavra “hermeneutica” como um termo técnico. Desde aí, a palavra sugere a arte de interpretar escritos antigos e atuais, sejam de ordem espiritual ou das ciências e do direito.[1]

         A Hermenêutica está relacionada à interpretação de textos antigos, atuais e/ou Sagrados, portanto. Mas, no caso específico da Teologia, está relacionada à interpretação das Escrituras Sagradas. Ao departamento da Teologia responsável pelo trabalho de interpretação das Escrituras chamamos Teologia Exegética, ou seja, a que trata da reta interpretação das Escrituras Sagradas.

         A Hermenêutica, então, é a ciência que ensina os princípios, as leis e as regras necessárias à interpretação da Bíblia. Vejamos algumas definições de Hermenêutica por alguns de seus mais importantes expositores:

         "Hermenêutica é a ciência que nos ensina os princípios, as leis e os métodos de interpretação" - Louis Berkhoff[2]

         “Hermenêutica bíblica ou Sagrada é o estudo metódico dos princípios e regras de interpretação das Sagradas Escrituras”Antonio Almeida[3]

         “O termo Hermeneutica é empregado quase sempre para designar princípios da interpretação da Escritura” E.P.Barrows, Th.D.[4]

         "Hermenêutica é a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos textos" - P. Ricouer

         "Hermenêutica é a ciência e arte de interpretar os textos bíblicos" - Henry Virkler

         Alguns autores, todavia, têm dado uma definição mais peculiar e menos tradicional a esta disciplina. Segundo Gordon Fee e Douglas Stuart, por exemplo, “embora a palavra hermenêutica ordinariamente abranja o campo inteiro da interpretação, inclusive a exegese, também é usada no sentido mais estreito de procurar a relevância contemporânea dos textos antigos”.[5] Para Fee e Stuart, a hermenêutica diz respeito ao “aqui e agora” da interpretação. O Estudioso alemão do Novo Testamento Klaus Berger define Hermenêutica nos seguintes termos: “Hermenêutica é a tentativa de descrever os dois modos de acesso ao texto (Exegese e Aplicação) cada um para si e em sua relação mútua e de classificá-los na perspectiva da teoria da ciência.”[6]

         Fica claro que o uso desta palavra tem tomado direções variáveis no mundo acadêmico. A proposta deste estudo é definir Hermenêutica nos termos alistados pelos estudiosos acima mencionados, isto é, como a Teoria da Interpretação Bíblica, complementada como veremos pela Prática Exegética.
1.2. Princípios da Hermenêutica

         A Hermenêutica trabalha com princípios e regras de interpretação aplicados a três categorias distintas de abordagem: a interpretação Gramatical do texto bíblico, a interpretação histórica do texto bíblico e a interpretação teológica do texto bíblico.[7] Para cada uma destas abordagens a Hermenêutica tradicional alista uma serie de regras e princípios de interpretação. Tais princípios de interpretação são resumidos a seguir.

REGRA I:
“A Escritura é a única Autoridade Suprema em questão de Religião,
Fé e Doutrina.”

REGRA II:
“A Escritura Interpreta a Escritura.....(...)”

REGRA III:          
 “A Experiência Pessoal deve ser Interpretada à Luz da Escritura, e
não a Escritura à Luz da Experiência Pessoal.”

REGRA IV:           
“Os Exemplos Bíblicos só têm Autoridade Prática quando Amparados
Por uma Ordem que os faça Mandamento Universal.”

REGRA V:          
   “O Principal Propósito da Escritura é Mudar nossas Vidas e não
Multiplicar nossos Conhecimentos.”

REGRA VI:      
   “Todo Cristão tem o Direito e a Responsabilidade de Interpretar
Pessoalmente a Escritura, Seguindo Princípios Hermenêuticos
universalmente aceitos pela Ortodoxia Bíblica.”

REGRA VII:     
      “Não Obstante ser Importante e Útil, a História da Igreja,
Concomitante à Teologia Patrística, não é Decisiva , ou
Condicional, à Fiel e Exata Interpretação da Escritura.”

REGRA VIII:        
  “A Escritura tem somente um Sentido, e Deve ser Tomada
Literalmente.”

REGRA IX:      
      “As palavras do texto Escriturístico devem ser Interpretadas no
Sentido que tinham no Tempo do seu Autor.”

REGRA X:   
       “As palavras do texto Escriturístico devem ser Interpretadas em
relação à sua Sentença própria e ao seu Contexto.”

REGRA XI:       
     “Quando um Objeto Inanimado é usado para descrever um ser vivo,
a  proposição pode ser considerada figurada.”

REGRA XII:       
    “Somente certas partes e figuras de uma parábola, e não cada
detalhe da mesma, de modo alegórico, representam certas realidades
de caráter moral ou espiritual.”

REGRA XIII:     
   “Uma vez que a Escritura se originou de modo histórico, e sua
historicidade é indubitavelmente  patente e notória, Ela deve ser
Interpretada à luz da História.”

REGRA XIV:    
      “Os fatos ou acontecimentos Históricos se tornam símbolos de
verdades espirituais, somente se a Escritura assim os designarem.”

REGRA XV:      
    “A Escritura deve ser Interpretada gramatica e literariamente, antes
de ser Interpretada Teologicamente.”

REGRA XVI:  
     “Uma doutrina não pode ser considerada Escriturística, a menos
que resuma e inclua tudo o que a Escritura diz sobre ela.”

REGRA XVII:
   “Quando parecer que duas Doutrinas ensinadas na Escritura são
contraditórias, deve-se aceitar ambas como Escriturísticas, crendo
confiantemente que elas se Explicarão dentro duma unidade mais
elevada.”

2. A Exegese

2.2. Definição

         Do grego exhghsiV (ekségesis [sacar para fora]), Exegese significa interpretação ou explicação de textos. No caso específico da Bíblia, a Exegese diz respeito à interpretação e explicação de textos bíblicos através de critérios metodológicos de cunho científico. A Exegese, portanto, lida com a prática da interpretação e comentários do texto Sagrado.

         Em antônimo a Exegese (levar para fora) temos a Eisegese (do grego eishghsiV,eiségesis, [introduzir, levar para dentro]), isto é, a prática de acrescentar ou introduzir ao texto bíblico concepções não pertinentes ao seu significado original ou intenção autoral. 

         A Exegese Bíblica, portanto, está mais relacionada à prática metodológica da interpretação do que à sua teoria e princípios, sejam eles confessionais ou técnicos. Segundo Uwe Wegner,ainda,“a Exegese é a interpretação científica de textos bíblicos”.[8]

2.3. Metodologia Exegética

         A Exegese Bíblica trabalha com uma metodologia de interpretação prática, dinâmica e desdobrada em Etapas e/ou Passos. Estes passos giram em torno de considerações importantes sobre a História e a Lingüística do texto bíblico.

         As Etapas e o modo de descrevê-las na Exegese vão variar de acordo com a linha ou método de interpretação adotado. Os principais métodos de Exegese são o Histórico-gramatical e o Histórico-crítico, o primeiro mais tradicional, confessional e ortodoxo, e o segundo mais liberal em seus pressupostos e crítico. Todavia, ambos têm importantes contribuições à formação do método exegético a ser adotado.[9]

         Segue um esboço de etapas exegéticas, dentre muitas outras propostas hoje, para o estudo e interpretação científica de passagens da Escritura Sagrada. 

Metodologia de Exegese Bíblica

1. Descobrindo os Limites do Texto (Delimitação da Perícope)
2. Determinando o Texto (Crítica Textual)
3.Traduzindo o Texto (Tradução e Análise Tradutiva)
4. Descobrindo o Gênero Literário (Crítica da Forma ou Formgeschichte)
5. Descobrindo o Significado das Palavras no Texto (Lexicologia)
6. Analisando a Gramática do Texto (Sintaxe)
7.Analisando a Redação do Texto (Crítica da Redação ou Redaktionsgeschichte)
8. Descobrindo o Contexto Canônico (Análise Teológica)
9. Aplicando o Texto em Nós (Contextualização da Mensagem)

3. A Hermenêutica e a Exegese

             A Hermenêutica e a Exegese estão intimamente relacionadas, pois ambas referem-se ao processo de interpretação bíblica. No entanto, é importante não confundirmos a Hermenêutica com a Exegese, pois uma é diferente da outra. A primeira é abrangente e genérica enquanto que a segunda é específica. Vamos começar por compreender a abrangência da Hermenêutica.

         A Hermenêutica estuda as regras e os princípios que devem ser considerados numa interpretação bíblica, estando assim mais relacionada com à Teoria da interpretação do que , necessariamente, com a Prática da interpretação em si.

         A Exegese, por outro lado, refere-se ao próprio trabalho de interpretação, fazendo uso dos princípios estabelecidos pela Hermenêutica Sagrada. A Hermenêutica traz a Teoria, e a Exegese a Prática da Interpretação. A Hermenêutica, portanto, ensinará os princípios que devem ser considerados na Exegese do texto bíblico.

         É como se estivéssemos preparando um bolo. Nesse caso a Hermenêutica seria a lista dos ingredientes, enquanto que a Exegese seria o modo de preparar esse bolo. Vale ressaltar que a concretização do bolo depende de ambos os elementos. Assim também, a Interpretação bíblica vai depender tanto do conhecimento das regras de interpretação, quanto da utilização dessas regras. Nessa definição, Hermenêutica e Exegese são interdependentes e indispensáveis.

         Alistamos a seguir algumas considerações sobre a relação entre Hermenêutica e Exegese, segundo alguns autores:

“Hermenêutica é, propriamente, a arte de Hermeneuein (interpretar), mas, no caso, designa a teoria (grifo meu) desta arte.” Louis Berkhof[10]

“Hermenêutica é, pois, a ciência de interpretação; exegese é a aplicação desta ciência à palavra de Deus. Quem escreve sobre a hermenêutica expõe os princípios gerais de interpretação, e o escritor exegético aplica estes princípios à interpretação da Escritura.”E.P.Barrows, Th.D.[11]

“..a Hermenêutica se distingue da Exegese em que esta é a aplicação dos princípios e regras estabelecidos por aquela.”Antonio Almeida[12]

“A Exegese, por outro lado, é a aplicação dos princípios e regras estabelecidos pela Hermenêutica”Antonieto Grangeiro Sobrinho[13]

“...a exegese relaciona-se à real interpretação de um texto, enquanto a hermenêutica diz respeito à natureza do processo interpretativo. A exegese termina dizendo: “esta passagem significa isto e aquilo”; a hermenêutica conclui assim: “este processo interpretativo constitui-se das seguintes técnicas e pressuposições”. Obviamente, as duas estão relacionadas. Mas embora a hermenêutica seja uma disciplina importante por seus méritos, idealmente nunca é um fim em si mesma: ela serve à exegese.” (os grifos são meus)     
D.A.Carson, Ph.D. [14]



[1] Como estudar e interpretar a Bíblia, Raimundo F. de Oliveira, CPAD,p.13.
[2] Princípios de interpretação bíblica, Louis Berkhof, Casa Publicadora Batista, p.11
[3]  Manual de Hermenêutica Sagrada, Casa Editora Presbiteriana, Antonio Almeida,p.11.
[4] Princípios de interpretação da Bíblia, E.P.Barrows, Centro Cristão de Literatura,p.13.
[5] Entendes o que lês?, Gordon Fee & Douglas Stuart, Vida Nova, p.25.
[6] Hermenêutica do Novo Testamento, Klaus Berger, Sinodal, p.91.
[7] Essa abordagem tríplice de princípios hermenêuticos diz respeito ao método histórico-gramatical de interpretação bíblica. Outras linhas de interpretação bíblica não levam em conta esta mesma forma de abordagem.
[8] Exegese do Novo Testamento, Uwe Wegner, Sinodal.
[9] Não obstante, a tendência contemporânea é por uma metodologia exegética cada vez mais multi e interdisciplinar,somando ao labor exegético a contribuição de disciplinas científicas como a sociologia,antropologia,lingüística,crítica literária,etc.
[10] Berkhof, op.cit.,p.11.
[11] E.P.Barrows, op.cit.,p.13.
[12] Antonio Almeida, op.cit.,p.11.
[13] Hermenêutica bíblica, Antonieto Grangeiro Sobrinho,CPAD,p.10.
[14] Os perigos da interpretação bíblica, D.A.Carson,Vida Nova, p.23.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Série Eventos Teológicos para a Igreja Hoje III

O Cristo Joanino:

 Chaves Exegético-Teológicas para Ler o

Evangelho de João 

Prof.D.F.Izidro

Um panorama do pensamento teológico do evangelista João com chaves de interpretação para a leitura de seu Evangelho. Revelação, Vida Eterna, , Pecado, Filho de Deus e outros temas fundamentais do Evangelho de João e de sua fascinante Teologia.
Para quem quer compreender a teologia joanina e pregar a partir do Evangelho de São João Apóstolo.

Período: 09 – 10 – 16 – 17 - 23/01/12
Horário: 19:30-22:00 hs.
Investimento: 80,00 R$
Local: SEBI – Sociedade de Estudos Bíblicos Interdisciplinares
Taguatinga Norte
Contato: 3257 8596/ 85321437







segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Epistolografia Antiga e Cristã Primitiva

Literatura Epistolar Greco-Romana

Cristã Primitiva[1]

Prof.D.F.Izidro

1. Literatura Epistolar Greco-Romana
        
1.1. Justificativa

         Sem dúvida, foi no mundo greco-romano que as cartas se firmaram como um método popular de comunicação. Por isso, para ajudar a lançar luz sobre as cartas do Novo Testamento, que são por sinal todas desse contexto, estudiosos têm se dedicado ao estudo da teoria e prática da redação epistolar no mundo greco-romano.

1.2. O Hábito Epistolar no Império Greco-Romano

         Foi durante a época da Pax Romana[2] que a escrita de cartas se tornou uma importante forma de comunicação.
         Devido ao vasto Império Romano, havia um excelente sistema de estradas por todo o mundo ocidental. Essas estradas estavam sob constante proteção do governo romano e possibilitavam viagens relativamente seguras entre as principais cidades do Império, o que, sem dúvida alguma, desinibiu a redação e circulação de correspondências.
         Roma não tinha um correio público oficial, mas os mensageiros, tanto particulares quanto governamentais, podiam viajar com alguma garantia de segurança.
         A forma de comunicação escrita era necessária tanto no governo como no comercio, e também nas relações particulares. Era natural que as famílias e amigos fizessem uso desse recurso, para os seus mais variados fins.
         Vale ressaltar que as cartas eram usadas não apenas para a comunicação oficial, comercial ou particular, mas também com fins de propaganda. Algumas dessas cartas funcionavam como modernos “anúncios públicos”. [3]
         As cartas particulares formam uma grande parte dos manuscritos antigos que foram encontrados pelos arqueólogos modernos no império greco-romano.

1.3. Forma Literária[4]

         A carta greco-romana típica[5] começava com o nome do Remetente, Endereço e saudação, corpo e conclusão; e, comumente, trazia expressões referentes à boa saúde e ao bom êxito do endereçado.
         Seguia-se ao corpo da carta uma despedida incluindo saudações enviadas por outras pessoas e pelo autor, além de votos finais de prosperidade.
         O endereço e a saudação eram em geral bastante curtos, assumindo tipicamente a forma: A para B, saudações.[6]

1.4. Distinções de Gênero

         É correta em princípio a sugestiva diferenciação de A.Deissmann entre carta não-literária, que serve apenas à correspondência momentânea, sendo, portanto, correspondência particular, e a carta literária artística (denominada por ele de “Epístola”), na qual a forma de carta é apenas aparente e serve apenas de moldura para um tratado. [7]
         Não obstante, a diferenciação de Deissmann se mostrou artificial, e hoje em dia geralmente se aceita que não se pode estabelecer distinções tão rígidas entre cartas particulares e públicas.
         Por outro lado, a verdadeira carta, de fato, nada tem a ver com literatura. F.Overbeck, que analisou sua natureza antes mesmo de Deissmann e com mais pertinência, define a verdadeira carta como “forma literária primitiva”.[8]
         A verdadeira carta é substituto para o intercâmbio oral, um substituto provocado pela separação física. Sua finalidade, portanto, poderia ser alcançada de igual modo ou até melhor oralmente. Para seu conteúdo, a forma escrita é um recurso paliativo (na impossibilidade da comunicação oral); por outro lado, na obra literária a forma escrita é constitutiva para o conteúdo.
         A carta verdadeira tem um endereço determinado e limitado: uma única pessoa ou várias pessoas.  O caráter de carta de uma carta verdadeira não se perde pelo tamanho do círculo de destinatários, conquanto este é determinado e limitado.
         A obra literária, porém, dirige-se de antemão a um público ilimitado. Um público mais aberto.
         Isso significa que a carta propriamente dita nasce de determinada situação e é moldada para ela.
         No entanto, seria uma restrição inadequada limitar a verdadeira carta a carta particular. Isso porque o aspecto pessoal, íntimo e direto que podem caracterizar a carta particular não são constitutivos para a verdadeira carta; na verdade, eles diminuem à medida que os correspondentes estão cada vez mais distantes ou quanto mais amplo se torna o destinatário. A falta desses traços “pessoais”, portanto, de modo algum já indica que se trata de uma carta literária artística.
         As cartas literárias artísticas são as cartas que estão destinadas de antemão para um público ilimitado e para a publicação, não servindo à correspondência contemporânea, mas antes servindo de moldura para um tratado temático. Por isso estão num nível literário.
         A forma escrita, portanto, é constitutiva delas, pois são produtos literários.
         Pode-se constatar nestas cartas literárias diversos tipos como, por exemplo, as cartas cuja forma de carta é apenas ficção e aquelas que mencionam uma pessoa concreta como destinatário – como as cartas de Sêneca a Lucílio – mas que na realidade se dirigem a todos que sabem ler e estão interessados no assunto.[9]
         É importantíssimo o fato de que entre a carta verdadeira e a carta literária existem transições: verdadeiras cartas, cujos autores já tiveram em mente na hora da redação publicações futuras, levaram isso em conta em relação à forma e ao conteúdo.
         Além disso, antigas cartas particulares revelam, no que se refere ao nível estilístico e à qualidade literária, uma rica escala de graus intermediários (entre a carta não-literária e a carta literária): temos cartas privativas que vão desde o bilhete primitivo desajeitado e cheio de erros até a carta perfeita na forma e de alto nível intelectual, satisfazendo todas as exigências literárias.
         Cartas particulares “cultas” ou “mistas” são inteiramente possíveis diante do fato de que a alta cultura epistolar era um fato social da época romano-helenista; escrever cartas já era exercitado na escola, e a carta particular cultivada era considerada “epistologia no verdadeiro sentido”.[10]
         Também cartas despretensiosas, tais como elas se encontram em grande número entre os papiros, têm as características da convenção literária e empregam elementos e jargões específicos de cartas tais como são correntes na carta particular “culta”.[11]
         De fato, estas cartas particulares “cultas” e os gêneros “mistos” devem ser considerados com mais atenção, se quisermos avaliar histórico-literariamente de modo adequado a posição das cartas cristãs primitivas, inclusive aquelas que estão no NT, entre as antigas cartas.
         Consideremos agora alguns desses gêneros epistolares intermediários[12]:

Como gênero intermediário propriamente dito deverá ser considerado o difundido tipo da carta entre amigos cujo tipo foi caracterizado como convenção de cunho pessoal e de individualidade estilizada, mas que não deveria enriquecer a literatura, antes deveria ser a manifestação do diálogo culto de pessoas distantes entre si. Mais próximas das cartas literárias artísticas encontram-se as cartas didáticas de filósofos e sábios (   por ex., de Epicuro, Erástenes, Arquimedes), tratados filosóficos, éticos e científicos para fins de ensino à distância. [13] Como tipos de cartas que se dirigem a um destinatário individual e, ao mesmo tempo, ao grande público, devem ser consideradas as cartas dedicatórias e o panfleto (carta aberta).

2. Literatura Epistolar Cristã Primitiva

2.1. O Problema do Gênero Literário

         As cartas cristãs primitivas, em face desta multiplicidade epistolar mencionada, são formalmente diversas. É obvio que a pergunta sobre em que espécie se enquadram as cartas cristãs primitivas não pode ser respondida com facilidade.
         Em toda literatura cristã primitiva que nos ficou preservada, singularmente a carta particular tem somente um representante: a Terceira Carta de João; pois cartas destinadas a pessoas individuais – como as de Paulo a Timóteo e Tito, de Inácio a Policarpo – não cabem aqui por razões de conteúdo; no caso da carta a Filemom, as opiniões podem ser diversas.
         Todos os demais escritos cristão-primitivos em forma de carta são destinados a comunidades, individuais ou a várias, dirigindo-se a um público mais ou menos numeroso.
         As cartas paulinas indubitavelmente autênticas dirigem-se a comunidades individuais, surgiram por motivos contemporâneos e posicionam-se frente a perguntas concretas. No entanto, não são correspondência particular.
         Paulo escreve a suas comunidades na qualidade de Apóstolo; as cartas devem ser lidas na reunião da comunidade (I Ts.5.27), levadas ao conhecimento de comunidades vizinhas (Cl.4.16). Como cartas apostólicas, elas possuem caráter público, oficial e autoritativo.
         Por outro lado, em virtude de seu conteúdo didático-doutrinário, as epístolas de Paulo foram entendidas e mal-entendidas muitas vezes como tratados dogmáticos e éticos. Todavia, embora nelas Paulo desenvolva sua teologia, ele não o faz a fim de erigir uma estrutura doutrinária, e, sim, para a superação e/ou resolução de problemas contemporâneos da comunidade destinatária: a situação concreta da comunidade determina o tema e a “correspondência” é o meio de exposição da doutrina.
         As cartas paulinas nada mais são do que verdadeiras cartas a um grupo de destinatários; o fato de que Paulo escreve como apóstolo não muda o caráter de carta de modo nenhum; pois escreve somente o que também teria dito oralmente – sua carta é substituição para a presença pessoal.
         Assim, as cartas paulinas não devem ser classificadas mesmo como cartas literárias artísticas.
         Na verdade, não se pode colocar as cartas paulinas paralelamente às cartas didáticas artísticas ou mesmo às verdadeiras cartas contemporâneas.
         As chamadas cartas “católicas” – com exceção de 2 e 3 João – e a Carta de Barnabé, que pode ser enquadrada nesse grupo, dirigem-se a um público cristão muito abrangente, alguns até a público ilimitado, e nesse sentido elas se aproximam da carta artística. No entanto, seu caráter de carta é problemático[14] e o real gênero de cada um desses escritos tem sido muito debatido entre estudiosos. Aspectos gerais e particulares encontram-se de forma simultânea também nestes escritos epistolares.
         Adolf Deissmann colocou todas as cartas de Paulo na categoria de cartas particulares, alegando que elas traziam as mesmas marcas características de uma redação apressada e de uma ausência de pretensões literárias que se vêem nas cartas-papiros gregas.[15]
         Contudo, a distinção de Deissmann entre “cartas” e “epístolas” se mostrou artificial, e hoje em dia geralmente se aceita que não se pode estabelecer distinções tão rígidas entre cartas particulares e cartas públicas.
         De modo geral, as cartas do Novo Testamento enquadram-se em algum ponto no meio dessa classificação, com algumas tendendo mais para a extremidade literária (Romanos e Hebreus) e outras mais para a extremidade particular (Filemon e 3 João).
         Muitos estudiosos têm buscado uma classificação mais exata, frequentemente trabalhando a partir de categorias estabelecidas mediante um estudo de cartas greco-romanas em geral.[16] No entanto, esses estudos até agora não levaram a conclusões concretas.[17] Provavelmente devemos nos contentar em identificar alguns dos aspectos particulares de cada carta do Novo Testamento e, em pontos específicos, estabelecer paralelos com outras cartas greco-romanas, no máximo.
         Em suma, a avaliação de Kümmel sobre o assunto do gênero literário das cartas do Novo Testamento exprime bem o que são e o que não devem ser as epístolas neotestamentárias:
         “Em vista da maneira toda especial de usar a forma epistolar na primitiva missão cristã, as linhas demarcatórias entre as cartas propriamente ditas e as epístolas do NT nem sempre podem ser traçadas com precisão. Uma epístola escrita para uma ocasião toda especial, e que evidentemente deve ser lida por todos os cristãos em determinada circunstância (1 Ts 5,27), uma epístola dirigida a uma comunidade particular, e que deve ser permutada com outra dirigida a uma comunidade vizinha (Cl 4,16), ou epístolas dirigidas a várias comunidades (Gl 1,2; cf. 2Cor 1.1), estão todas destinadas a se tornar textos literários com caráter oficial.
         Por outro lado, em epístolas de alcance tão geral como 1Pd ou Hb, não falta alguma alusão a determinada comunidades e a determinadas situações. A força motriz para a formação independente da forma epistolar num meio de autocomunicação literária da cristandade foi a real necessidade da missão para a edificação e instrução, admoestação e trabalho pastoral, defesa contra idéias errôneas, e manutenção da ordem eclesial.”[18]
2.2. Literalização das Epístolas

         É interessante o fato de que cartas não-literárias podem tornar-se “literatura”, ou seja, podem atingir o prestígio de verdadeiros livros.
         Isso acontece por meio de publicação, seja com base na importância do escrito ou de seu conteúdo.
         Por meio de publicação, tais cartas adquirem, com efeito, a característica mais essencial da literatura: o direcionamento para um público ilimitado.
         A literalização ou o tornar-se livro contra a vontade foi o destino das cartas neotestamentárias de modo especialmente excelente. Mas foi justamente um acontecimento posterior que precisamente nada tem a ver com a sua intenção original e com a própria forma desses escritos.
         Reconhecer a literalização pela qual as cartas neotestamentárias passaram é de vital importância uma vez que precisamos compreende-las primeiro como documentos circunstanciais históricos, para depois as interpretarmos como livros canônico-teológicos e normativos.

2.3. Forma Literária da Carta Cristã Primitiva

         As cartas cristãs primitivas adaptam-se em sentido formal às convenções epistolares de seu meio, a saber:

2.3.1. Prólogo Epistolar

         A carta era escrita na maioria das vezes em papiro, enrolada e expedida por mensageiros.
         O endereço constava no lado exterior do rolo: nome do destinatário (no dativo), o do remetente com para/ (pará [desde, de junto de]) ou apo/ (apó [da parte de]), muitas vezes formulado como imperativo: apodoV Maximw apo Zemprwniou adelfou= (“Entregar a Máximo de Semprônio, seu irmão”), às vezes com menção do lugar de destino.
         A carta em si tinha um formato convencional: o formulário. Neste formulário as formas do proêmio (prólogo) e conclusão (epílogo) eram fixas:
         O início é formado pelo chamado pré-escrito, que contém três elementos: remetente, destinatário e saudação (também chamados superscriptio, adscriptio e salutatio) – normalmente nesta ordem.[19]
         No pré-escrito não se trata do endereço, mas da apresentação e saudação.
         No mundo do cristianismo primitivo estavam em uso duas formas:
(a)   uma forma grega com frase na terceira pessoa: “X (diz) a Y que se alegre!”;
(b)   e na forma oriental em duas frases: uma sem predicado na terceira pessoa, e outra na segunda pessoa – “A a B; alegra-te!” ou “salve!”.
         O pré-escrito oriental é o mais usado pelos cristãos primitivos, assim acontece em quase todas as cartas neotestamentárias, em 1 Clemente, na Carta de Policarpo aos Filipenses e no Martírio de Policarpo.
         O pré-escrito grego encontra-se no NT em Tiago (1.1), na carta das autoridades de Jerusalém que contém o chamado decreto dos apóstolos (At.15.23), estilisticamente correto no escrito de Cláudio Lísias a Félix (At.23.26) e na maioria das cartas de Inácio.
         Os três elementos do pré-escrito podem ser ampliados: os nomes na superscriptio (remetente) e na adscriptio (destinatário) por relações de parentesco, títulos e honrarias do remetente e do destinatário. Paulo e Inácio são muito criativos na variação da superscriptio e adscriptio.
         A salutatio paulina tem a forma básica cariV umin kai eirhnh (cháris humîn kaì eiréne [graça e paz a vós] I Ts.1.1), a qual também aparece em outras cartas paulinas com a ampliação apo qeou patroV kai kuriou Ihsou Cristou (apò theoû patrós kaì kuríou Iesoû Christoû [da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo]).
         A introdução que segue ao pré-escrito ocupa uma posição especial no formulário da carta, e isso porque ocorre somente no Corpus Paulinum , em I Pedro e , no mesmo sentido e modificado, em 3 Jo 2. Ela também falta três vezes em Paulo (Gálatas, Timóteo e Tito).
         Essa introdução ou “proêmio” é parte integrante do contexto de carta e é um agradecimento pelo estado da comunidade destinatária, muitas vezes associado com a idéia da intercessão e da memória; mas o agradecimento domina o todo.
         Nesse “proêmio” unem-se assuntos pessoais e se anunciam o tema ou temas da carta (cf.Rm.1.8-17;I Co.1.4-9).
         Há duas versões desse proêmio: a mais freqüente inicia com eucaristw tw qew (eucharisto to theo [dou graças a Deus]) e tem continuidade numa frase construída com oti (hotí [porque/que]) ou com um particípio;
         A outra forma começa com euloghtoV o qeoV (eulogetòs ho theós [bendito (seja) Deus]), comumente chamado de “Eulogia” (e que só aparece em 2 Co.1.3;Ef.1.3;1Pe.1.3).
         Embora os diversos elementos do proêmio cristão possam ser encontrados em cartas não cristãs, sua estilização em oração de graças, porém, remonta a Paulo.

2.3.2. Epílogo Epistolar

         A conclusão da carta tem uma forma relativamente fixa. É aqui o lugar convencional para eventuais saudações do remetente ao destinatário e a parentes e amigos em sua circunvizinhança, mas também de saudações da circunvizinhança do remetente.
         Depois desses aspasmoi/ (aspasmoí [saudações]), segue a saudação final, que nas cartas seculares tem, na maioria das vezes, a forma de um imperativo: errwso/errwsqe (érroso/érrosthe [tenha/tenham saúde]).
         Algumas cartas cristãs primitivas também concluem assim; as cartas inacianas, no entanto, sempre com acréscimos cristãos, outras com votos de paz (I Pe.5.14;3 Jo.15).
         Em sua forma mais antiga, os votos finais de Paulo têm o seguinte teor: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja com vocês” (I Ts.5.28) e aparece nas outras cartas paulinas de forma levemente variada.
         Logo abaixo dos votos finais estava, ainda que nem sempre, a data do documento: mês e dia, com menor freqüência o ano.
         Na coleção e publicação das cartas normalmente a data era omitida – o que sem dúvida também ocorreu com as cartas de Paulo. Contudo, numerosas cartas em papiro mostram como se datavam as cartas.

3. Literatura Epistolar Paulina

3.1. A Importância Histórica do Corpus Paulino

         Os escritos cristãos mais antigos preservados que temos não são materiais sobre Jesus, mas as cartas de Paulo, todas escritas por volta de 50 e 60 do século I d.C.
         As cartas de Paulo, portanto, são a nossa fonte mais antiga e mais direta para o desenvolvimento das primeiras comunidades cristãs.

3.2. A Autoridade e Influência do Corpus Paulino na Igreja Cristã Primitiva

         De fato, o instrumento “literário” forjado por Paulo para a contínua manutenção das igrejas exerceu forte influência sobre os autores seguintes, de modo que o uso do meio literário da carta com objetivos de propaganda e de organização da igreja se tornou bastante popular.
         Para produzir essa literatura, os cristãos podiam recorrer às cartas de Paulo como modelo.
         Em pouco tempo outros também começaram a escrever sob seus próprios nomes ou em nome de outros apóstolos, mas ainda seguindo a estrutura das cartas originais de Paulo.
         1 Clemente , escrita de Roma para Corinto no fim do século I, tem o objetivo de conseguir o que Paulo já fizera anteriormente, ou seja, motivar os coríntios a resolver suas desavenças internas. O bispo Inácio de Antioquia, na viagem para o seu martírio em Roma no começo do século II, voltou a adotar esse modelo na série de cartas que escreveu para comunidades da Ásia Menor.
         A carta paulina também influenciou, quiçá, os autores das cartas católicas do Novo Testamento (Tiago,I,II Pedro,I,II,IIIJoão e Judas). O profeta João, ao escrever o Apocalipse em seu exílio em Patmos, incluiu nele sete cartas a igrejas situadas na Ásia Menor, procurando aconselhar essas comunidades conturbadas.
         Depois da metade do século II, o bispo Dionísio de Corinto escreveu cartas a várias comunidades na Ásia Menor e em Creta para adverti-las sobre formas de ascetismo heréticas.
         Em todos esses casos, é evidente que a carta se tornara o principal instrumento político com que líderes das comunidades cristãs procuravam moldar as congregações cristãs e estruturar, pelo menos até certo ponto, uma organização da igreja que abrangesse o mundo todo.

3.3. Gênero do Corpus Paulino

         As Epístolas de Paulo não são escritos ocasionais apenas, nem são redigidas apenas para comunicar verdades teológicas. Essas cartas são verdadeiros instrumentos de comunicação oral durante a ausência do apóstolo, com fins político-eclesiásticos de promover a organização contínua e manutenção das comunidades cristãs que haviam sido fundadas por Paulo. Embora essas cartas sejam elaboradas com base em modelos judaicos e greco-romanos, sua retórica é inspirada pelas exigências de situações paulinas específicas e devem ser entendidas no contexto imediato das necessidades e problemas das comunidades que ele fundara.
         Como bem definiu Dibelius, “Sua posição na história da literatura está caracterizada pelo fato de que, muitas vezes, suas cartas se alçam desde o objeto atual a validade geral sermonária, e que não perde de vista a intimidade da correspondência, especialmente no diálogo pessoal, mas também na atenção prestada às necessidades do destinatário”[20]
         As Epístolas de Paulo, portanto, quanto ao seu gênero literário, se situam entre a carta particular não-literária, circunstancial, e a carta literária artística, tratado. Algumas,de fato, são mais particulares e circunstanciais (I,II Coríntios), enquanto outras são mais literárias ou “tratadícias” (Romanos).

3.4. Características Estilísticas do Corpus Paulino

         Na Superscriptio (Pré-escrito: Remetente), Paulo menciona às vezes, além de si mesmo, ainda outras pessoas como co-remetentes (Silvano e Timóteo, ITs.1.1; “todos os irmãos que estão comigo”, Gl.1.2). Todavia, essa menção não significa que sejam co-autores[21], e, sim, apenas que são co-responsáveis pela carta, e no pré-escrito de Gálatas isso tem o sentido, em vista da heresia combatida, de mostrar que Paulo está no consensus ecclesiae (consenso eclesiástico).
         Encontra-se ocasionalmente na conclusão da carta a observação de que agora o próprio Paulo passa a empunhar a pena (ICo.16.21;Gl.6.11;Cl.4.18;IITs.3.17). Portanto, Paulo ditou suas cartas, pelo menos a maioria delas, e a alusão mais explícita desse fato quiçá esteja em Rm.16.22, onde o secretário se identifica como Tércio.
         De fato, o caráter de estilo oral de grandes porções das cartas de Paulo parece confirmar esse último enunciado. Percebe-se nesses escritos o estilo oral em dois fenômenos opostos, ora em certa informalidade, ora em rigor formal.
         Quanto à informalidade do estilo presumivelmente oral das cartas de Paulo, devem ser mencionadas as frases incompletas (anacolutos; Rm.5.12ss;Gl.2.4ss.), ou posteriores auto-correções (ICo.1.16).
         Para o segundo caso, isto é, o rigor formal, o qual também sugere um estilo oral, os seguintes elementos rigorosamente retóricos devem ser considerados: o caráter dialogal de muitas passagens,ou seja, pergunt e palavra dirigida a um interlocutor imaginário, palavras de repreensão a um adversário imaginário, perguntas retóricas; efeitos sonoros por rima final em enumerações, trocadilhos, troca das preposições conservando o mesmo sentido; paralelismo dos membros, antíteses, quiasmos, ritmo; determinados esquemas de disposição (a-b-a). Sem dúvida, a observação desses elementos retóricos é de grande importância para a compreensão exata do que Paulo quer dizer.[22]
         Outras particularidades das cartas de Paulo estão relacionadas a seu objetivo doutrinário, pelo fato de que o apóstolo se propõe a esclarecer em princípio questões contemporâneas, recorrendo ocasionalmente a textos autoritativos. Sobretudo, Paulo emprega a Escritura, todavia de modo mais abundante nas chamadas cartas principais (Romanos,I,II Coríntios e Gálatas).
         Na maioria das vezes cita o AT na versão LXX, trazendo citações avulsas e combinações de citações, e muitas vezes faz extensas demonstrações escriturísticas que em sua metodologia são determinadas pela exegese judaica (Midráshica).[23]
         Além disso, temos também a citação de textos cristãos pré-paulinos que o próprio Paulo introduz ocasionalmente como citações pela expressão da terminologia técnica da tradição paralambanein (paralambánein [receber de]) e paradidonai (paradidónai [entregar,transmitir]): tais como a liturgia da ceia do Senhor de ICo.11.23ss e a fórmula pistis de ICo.15.1ss. Trata-se de formas pré-literárias de conteúdo cristão, cuja maioria está preservada nas cartas paulinas. O uso que Paulo faz desse material é muito diferenciado, ora citando-o com exatidão, ora glossado e parafraseado, atribuindo-lhe no contexto diferentes funções, ora constitutivamente doutrinárias, ora parenéticas.[24]
         A isso também acresce outro material tradicional, dessa vez não de origem exclusivamente cristã, o que é significativo para as cartas paulinas: a Parênese.[25]
         A Parênese é muita usada por Paulo no final de suas cartas (Rm.12s;Gl.5.13-6.10;ITs.4.1-12;5.1ss.).
         Segundo alguns estudiosos como Vielhauer, a parênese “deve ser diferenciada das porções que tratam de questões éticas atuais da respectiva comunidade. A parênese não pode ser usada para a reconstrução das condições morais e dos problemas da comunidade destinatária”.[26]
         Devemos mencionar ainda um outro fenômeno literário e estilístico bastante comum nas cartas paulinas, as Intercalações.
         Intercalações são porções que (1) interrompem as explanações da correspondência, (2) estão pouco relacionadas com o contexto, e que (3) demonstram certa coesão em si mesmas.
         São, portanto, porções que parecem excursos ou até mesmo inserções, e que às vezes foram consideradas como interpolações posteriores, sob aspecto literário.
         Contudo, hipóteses de interpolações são inadequadas nesse caso, pois, por um lado, divagações para temas preferidos também não eram incomuns na filosofia popular cínico-estóica;
         E, em segundo lugar, com base nas semelhanças terminológicas, estilísticas e de conteúdo dessas porções com os outros escritos de Paulo, não se pode negar ao apóstolo a autoria desses trechos questionáveis em suas cartas. Tem que se concluir que são da autoria paulina, mas que não foram concebidos no momento da redação das cartas, antes já haviam sido elaboradas previamente em outros contextos.
         Como exemplos desses trechos temos: Gl.4.21-31;ICo.2.6-16;13;10.1ss;IICo.3.7-18;6.12s cf.7.2;Rm.9-11.
         Sobre a origem ou surgimento desses textos não criados para a correspondência, Martin Dibelius sugeriu que Paulo os teria formulado para fins da pregação e Hans Conzelmann expôs a hipótese de uma “escola” dirigida por Paulo (em Éfeso), uma atividade docente que ia além da instrução dos catecúmenos.
         Por mais hipotética que essa teoria possa ser[27], uma atividade escolar paulina como Sitz im Leben (“lugar vivencial”) explicaria satisfatoriamente o surgimento de tais intercalações paulinas.

3.5. Questões de Autenticidade

         No início do século XIX, a autenticidade paulina de algumas epístolas foi posta em dúvida – primeiramente as Pastorais (Timóteo e Tito), e depois também as epístolas aos Tessalonicenses, aos Efésios, aos Filipenses e também aos Colossenses.
         Nesta época, F.C.Baür e a Escola de Tübingen reconheciam apenas as chamadas “grandes epístolas”, a saber: Gálatas, I e II Coríntios e Romanos, como autênticos documentos de Paulo, pois somente estas Epístolas poderiam ser entendidas como testemunhos da luta entre Paulo e os judaizantes, inclusive Tiago e Pedro.
         Contudo, logo se tornou patente que a Escola de Tübingen encerrava a imagem histórica do cristianismo primitivo num esquema muito estreito.
         A conclusão de muitos estudiosos, então, quanto a autenticidade paulina das cartas que levam o nome do Apóstolo foi a de que Romanos, I,II Coríntios, Gálatas, Filipenses, I Tessalonicenses e Filemon, são de fato de Paulo; enquanto que Efésios, Colossenses, II Tessalonicenses, I,II Timóteo e Tito, não são paulinas, mas deuteropaulinas, isto é, composições de comunidades paulinas ou discípulos de Paulo.
         Não obstante, tem sido possível argumentar hoje, com sólidos argumentos, que de fato todas as Epístolas nominais de Paulo, em o NT, são autenticamente paulinas.[28]

3.6. As Cartas Perdidas de Paulo

         Sem dúvida, Paulo escreveu mais do que aquilo que ficou preservado em o NT, pois já na época de suas epístolas mais antigas Paulo fala de seu hábito de escrever cartas: IITs.3.17.
         Portanto, essas epístolas mais antigas devem ter sido perdidas.
         Além dessas mais antigas, há menção de, pelo menos, duas epístolas enviadas aos coríntios, mas que nunca chegaram até nós (ICo.5.9;IICo.2.4), como também uma epístola dirigida aos laodicenses (Cl.4.16).
         Essa última epístola mencionada, aos laodicenses, parece ter motivado a composição de uma tal Epístola de Paulo aos Laodicenses, considerada claramente falsificada.
         Há também em Atos de Paulo (c.180 d.C.), apócrifo, talvez sob a influência de ICo.7.1;5.9, referência a uma epístola dos coríntios a Paulo e uma resposta de Paulo (III Coríntios).
         Há também uma produção artificial de uma troca de correspondências em latim entre Paulo (seis epístolas) e o filósofo Sêneca (oito epístolas), provavelmente do século IV.










[1] Fontes Bibliográficas: Carson,D.A.;Moo,Douglas J.;Morris,Leon.Introdução ao novo testamento.Vida Nova: São Paulo;Hale, Broadus David.Introdução ao estudo do novo testamento.Juerp: Rio de Janeiro;Kümmel, W.G.Introdução ao novo testamento.Paulinas: São Paulo;Gundry,Robert H.(1998).Panorama do novo testamento.Vida Nova: São Paulo;Vielhauer,Philipp.História da literatura cristã primitiva.Academia Cristã: São Paulo; Rienecker,Fritz & Rogers,Cleon.Chave lingüística do novo testamento grego.Vida Nova: São Paulo; Köester,Helmut.Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.vol.2.Paulus: São Paulo.
[2] A Pax Romana, expressão latina para "a paz romana", é o longo período de relativa paz, gerada pelas armas e pelo autoritarismo, experimentado pelo Império Romano. Iniciou-se quando Augusto César, em 29 a.C., declarou o fim das guerras civis e durou até o ano da morte de Marco Aurélio, em 180 d.C. Pax Romana era uma expressão já usada na época, possuindo um sentido de segurança, ordem e progresso para todos os povos dominados por Roma. (fonte: http://www.wikipedia.org.br/, enciclopédia virtual).
[3] A palavra grega usada para estes “anúncios públicos” (prografw [prográfo], escrever antes, escrever em público; esse verbo era usado para descrever todas as notícias ou proclamações públicas, e indica um anúncio público no qual a validade de um fato específico é proclamada) é usada por Paulo em Gálatas 3.1, para indicar a natureza pública da proclamação da morte de Jesus Cristo.
[4] Stanley K.Stowers reuniu exemplos de cartas antigas em Letter writing in Greco-Roman antiquity,p.58-173. Quanto às antigas regras de redação epistolar, veja Abraham J.Malherbe, em Ancient epistolary theorists.
[5] Aqui temos apenas uma descrição básica e elementar sobre a estrutura formal das cartas greco-romanas; uma descrição mais detalhada dessa estrutura será apresentada no tópico 2: A Literatura Epistolar Cristã Primitiva.
[6] Essa fórmula aparece na carta enviada pelo concílio apostólico às igrejas, em At.15.23, e também na epístola de Tiago (1.1).
[7] A.Deissmann.(1923).Licht von Osten.6º ed.p.116ss.
[8] F.Overbeck.Anfänge der patristischen Literatur.p.21.
[9] As cartas artísticas devem ser diferenciadas das cartas pseudônimas ou heterônimas, isto é, aquelas que falsificam o autor e mencionam como tal uma grande sumidade (p.ex.Sócrates,Platão). A confecção de cartas anônimas não era considerada falsificação na antiguidade, e, sim, como homenagem ao grande nome, e constituía uma convenção literária.
[10] Cf.Thraede,p.1ss.;p.62,n.3.
[11] É interessante observar também que a carta particular revela fortes diferenças em linguagem, estilo e tom, de acordo com o seu destinatário. À isso corroboram as palavras de Cícero: “Aliter scribimus quo eos solos,quibus mittimus, aliter quod multos lecturos putamus” (“Escrevemos de um modo quando pressupomos como leitores somente aqueles aos quais nos dirigimos, e de outro quando pressupomos muitos leitores”).Ad fam.15,21,4.
[12] Modulações possíveis em cartas particulares de um mesmo autor estão bem exemplificadas nas coleções de cartas de Cícero. Cícero foi filósofo, orador, advogado e político romano, no século I a.C.
[13] Não obstante, as cartas de Epicuro, dirigidas a alguns discípulos de fora e destinadas a seus seguidores, devem ter sido mais do que apenas meios didáticos, mas verdadeiros representantes do mestre ausente.
[14] I João e Tiago, por exemplo.
[15] Adolf Deissmann,Prolegomena to the Biblical letters and epistles, em Bible studies (p.1-59).
[16] Ex. Stowers, em Letter Writing (p.51-173).
[17] Depois de identificar as diversas categorias de cartas no mundo greco-romano, Stowers não encontra no Novo Testamento paralelos com várias categorias; em vez disso ele descobre dentro das cartas do Novo Testamento paralelos com várias categorias. Aune reconhece a dificuldade de classificar as cartas do Novo Testamento (Literary environment,p.203).
[18] Kümmel, W.G.Introdução ao novo testamento.Paulinas: São Paulo.pg.318.
[19] Esta ordem é comum nas cartas cristãs primitivas.
[20] Dibelius,Martin.Geschichte der urchristlichen Literatur II,p.9.
[21] De modo algum se pode sustentar que as cartas não seriam da autoria de Paulo, mas que ele apenas teria determinado as linhas gerais, deixando a elaboração para secretários.
[22] Estudiosos como J.Weiss e Rudolf Bultmann, comprovaram esses elementos retóricos, indicadores de um estilo oral, em Paulo.
[23] A argumentação no estilo dos escribas determina o caráter de Rm.3s e Gl.3s, e também muitas outras passagens menores.
[24] A essa categoria de material pré-paulino também tem sido acrescentados os textos de Fp.2.6-11.Cl.1.15-20;ITm.3.16.
[25] Designa-se de parênese (= discurso de admoestação), no sentido histórico-formal, um texto que encadeia admoestações de conteúdo ético geral.
[26] Vielhauer,Phillipp.História da literatura cristã primitiva.Academia Cristã: São Paulo.p.99.
[27] De fato, a atividade escolar cristã-judaica normalmente é datada para um pouco mais tarde na literatura cristã primitiva (1 Clemente).
[28] cf., por exemplo, as discussões sobre a autoria paulina de todas essas cartas, em Carson,D.A.;Moo,Douglas & Morris,Leon.Introdução ao novo testamento.Vida Nova: São Paulo.