quinta-feira, 7 de julho de 2011

Gnosticismo e Cristianismo Primitivo

A BIBLIOTECA COPTA DE NAG

HAMMADI,
O NOVO TESTAMENTO
E O CRISTIANISMO PRIMITIVO[1]

Prof.D.F.Izidro

         Mais ou menos à mesma época das descobertas de Wadi Qumrân, foram encontrados, no Egito, próximo a Nag Hammadi, dezenas de manuscritos em forma de códices relacionados ao gnosticismo cristão primitivo. Esta descoberta, sem dúvida alguma, traz grandes contribuições para o estudo do ambiente da Igreja cristã primitiva, especialmente dos movimentos heterodoxos que concorriam com ela no II século da Era Cristã. Contribuições exegéticas e filosóficas também advêm desta descoberta. O conteúdo da biblioteca de Nag Hammadi não deve ser subestimado quanto ao seu valor e jamais ignorado como mera coleção de livros não-canônicos e heréticos. Consideremos a seguir toda a trajetória da manifestação desses manuscritos.

  1. A Descoberta da Biblioteca Copta de Nag Hammadi

         Em dezembro de 1945, camponeses da região de Nag Hammadi, no Alto Egito, fertilizavam suas plantações carregando nitratos da escarpa do Jabal al-Tarif para os seus campos, usando as bolsas dos camelos. Os irmãos Muhammad e Khalifah Ali, do clã al-Samman, atrelaram seus camelos e depararam com um jarro, à medida que estavam escavando ao redor da base. Muhammad Ali relatou que primeiro ficou com medo de quebrar o jarro, cuja tampa estava selada com betume, temendo que um gênio pudesse estar preso dentro dela; mas, pensando que o jarro conteria ouro, ele recobrou sua coragem e o quebrou com sua picareta. De dentro saíram vários códices e fragmentos de papiro. Ele embrulhou os livros na sua túnica, arremessou-a sobre o ombro, desatrelou o camelo e carregou os livros para casa, uma moradia em um lugarejo de al-Qasr, que era a localidade antiga de Chenoboskia, onde o grande São Pacômio (292-346 d.C.) se converteu e começou a sua vida de eremita cristão.
         Tendo sido informado que os livros eram cristãos, simplesmente com base na escritura copta, Muhammad Ali pediu ao padre da igreja copta de al-Qasr para guardá-los em sua casa. A esposa deste padre tinha um irmão chamado Raghib Andrawus, que ia de vilarejo a vilarejo em um circuito ensinando inglês e história nas escolas paroquiais da Igreja copta. Uma vez por semana, quando ensinava em al-Qasr, ele ficava hospedado na casa da irmã. Quando viu um dos livros (Códice III), reconheceu o valor potencial e persuadiu o padre a dá-los a ele. Ele levou os livros para o Cairo e os mostrou a um médico interessado no idioma copta, George Sobhi, que chamou as autoridades do Departamento de Antiguidades. Eles se apossaram do livro e concordaram em pagar 300 libras a Raghib. Após o que parecia ter sido um atraso infindável, Raghib finalmente conseguiu receber 250 libras, desde que concordasse em fazer uma doação de 50 libras ao Museu copta, onde o livro ficara guardado. O Registro do Museu indica que o registro foi feito no dia 4 de outubro de 1946.
         Outros livros dos códices chegaram ao Museu copta do Cairo, no Egito, através de outras pessoas. Vizinhos muçulmanos iletrados trocaram ou venderam o restante dos manuscritos por quase nada. Nashid Bisadah tinha um e o confiou na mão de um comerciante de ouro de Nag Hammadi para que o vendesse no Cairo, sendo que depois dividiram o lucro. Outro relato se refere a um comerciante de grãos que havia adquirido outro e vendido no Cairo por um preço tão alto que o possibilitou montar o seu próprio negócio. Bahij Ali, um fugitivo da lei de al-Qasr, conseguiu a maioria dos livros. Escoltado por um antiquário muito conhecido na região, Dhaki Basta, foi ao Cairo. Eles ofereceram os livros primeiro na loja Mansoor no Shepherds Hotel, em seguida para um loja de Phokion J.Tano, que acabou comprando o estoque completo e, em seguida, voltaram para Nag Hammadi buscar tudo o que havia sobrado. Atualmente a Biblioteca de Nag Hammadi está reunida novamente e conservada no Museu copta do Cairo, no Egito.
 
  1. O Conteúdo da Biblioteca Copta de Nag Hammadi

         A Biblioteca de Nag Hammadi consiste de 52 tratados, divididos em 13 códices, 1.240 páginas escritas, sendo que 6  tratados são duplicatas. Portanto, são 46 obras escritas em língua copta (antigo idioma egípcio com caracteres gregos). Destas, 40 são podem ser encontradas em lugar nenhum, sendo totalmente novas. Quase todas estas obras foram produzidas originalmente em grego e depois traduzidas para o idioma copta, no Egito e/ou em outras regiões. As obras são relativamente curtas, com exceção apenas de algumas (Zostrianos,VIII,1; Tratado Tripartido, I,5). A seguir temos uma descrição de todo o conteúdo da Biblioteca Copta de Nag Hammadi.
Códice I:
A Oração do Apóstolo Paulo (I,1)
O Apócrifo de Tiago (I,2)
O Evangelho da Verdade (I,3)
O Tratado Sobre a Ressurreição (I,4)
O Tratado Tripartido (I,5)
Códice II:
O Apócrifo de João (II,1)
O Evangelho de Tomé (II,2)
O Evangelho de Filipe (II,3)
A Hipóstase dos Arcontes (II,4)
Sobre a Origem do Mundo (II,5)
A Exegese da Alma (II,6)
O Livro de Tomé, O Contendor (II,7)
Códice III:
O Apócrifo de João (III,1)
O Evangelho dos Egípcios (III,2)
Eugnostos, O Bem-aventurado (III,3)
A Sophia de Jesus Cristo (III,4)
O Diálogo do Salvador (III,5)
Códice IV:
O Apócrifo de João (IV,1)
O Evangelho dos Egípcios (IV,2)
Códice V:
Eugnostos, O Bem-aventurado (V,1)
O Apocalipse de Paulo (V,2)
O (Primeiro) Apocalipse de Tiago (V,3)
O (Segundo) Apocalipse de Tiago (V,4)
O Apocalipse de Adão (V,5)
Códice VI:
Os Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos ( VI,1)
O Trovão: A Mente Perfeita (VI,2)
Ensinamento Autoritário (VI,3)
O Conceito de Nosso Grande Poder (VI,4)
Platão, A República (VI,5)
O Discurso Sobre a Oitava e a Nona (VI,6)
A Oração de Ação de Graças (VI,7)
Asclépio (VI,8)
Códice VII:
A Paráfrase de Shem (VII,1)
O Segundo Tratado do Grande Seth (VII,2)
O Apocalipse de Pedro (VII,3)
Os Ensinamentos de Silvanos (VII,4)
As Três Estelas de Sethe (VII,5)
Códice VIII:
Zostrianos (VIII,1)
A Carta de Pedro a Filipe (VIII,2)
Códice IX:
Melquisedeque (IX,1)
O Pensamento de Norea (IX,2)
O Testemunho da Verdade (IX,3)
Códice X: Marsanes
Códice XI:
A Interpretação do Conhecimento (XI,1)
Uma Exposição Valentiniana (XI,2)
Sobre a Unção (XI,2a)
Sobre o Batismo (XI,2b) A
Sobre o Batismo (XI,2c) B
Sobre a Eucaristia (XI,2d) A
Sobre a Eucaristia (XI,2e) B
Allogenes (XI,3)
Hypsiphrone (XI,4)
Códice XII:
As Sentenças de Sextus (XII,1)
O Evangelho da Verdade (XII,2)
Fragmentos (XII,3)
Códice XIII:
Protenóia Trimorfa (XIII,1)
Sobre a Origem do Mundo (XIII,2)
Códice de Papiro Berolinensis 8 502:
BG O Evangelho de Maria
BG O Apócrifo de João
BG A Sophia de Jesus Cristo
BG O Ato de Pedro

         Estes tratados foram traduzidos do grego para o copta e nem sempre por tradutores capazes de captar a profundidade ou a sublimidade que se buscava neles. Contudo, a maioria dos textos está bem traduzida, mas quando temos duplicações para comparar podemos sentir a diferença que faz uma tradução da outra quanto à sua qualidade. Isto nos leva a indagar sobre os outros textos que existem em apenas uma única versão tradutiva.
         Além disso, é difícil chegar a uma estimativa do número de erros não-intencionais que os escribas devem ter cometido no processo de transmissão dos textos, uma vez que não dispomos de outras cópias para um trabalho de crítica textual comparativa. Não há quem possua, como no caso da Bíblia, uma quantidade de manuscritos, originários do mesmo texto, que contribua para a correção dos textos quando comparados uns com os outros. Somente quando um erro pode ser detectado na cópia única temos meios para corrigi-los.
         Além disso, existe a deterioração física dos manuscritos que começou antes de serem enterrados, por volta de 400 d.C., e que foi piorando à medida que permaneciam enterrados, e não parou por completo no período entre a sua descoberta, em 1945, e a sua conservação final, 30 anos depois. Quando apenas algumas palavras estão faltando, elas podem ser preenchidas de maneira adequada. Contudo, quando apresentam lacunas enormes, o texto deve permanecer em branco – não é possível restaurar o texto.
         Contudo, o leitor não deve se sentir desmotivado por tais barreiras à ler o texto, pois, não obstante tais dificuldade textuais, o texto pode ser lido, estudado e apreciado sem nenhuma grande dificuldade. As limitações textuais tem sido criativamente superadas pelos pesquisadores e restauradores da Biblioteca de Nag Hammadi.
         Os tratados da Biblioteca de Nag Hammadi estão escritos em papiro e na forma de Códices. Cada folha de papiro utilizada na Biblioteca de Nag Hammadi tem aproximadamente 1 metro de comprimento.
   
  1. Origem e Datação da Biblioteca Copta de Nag Hammadi

         A grande maioria dos tratados da Biblioteca Copta de Nag Hammadi são gnostico-cristãos. Contudo, há alguns tratados que são gnósticos, mas não são cristãos (Apocalipse de Adão, por exemplo), outros são cristãos, mas não são gnósticos (Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos, por exemplo), e alguns nem são gnósticos e nem são cristãos (Os Ensinamentos de Silvanos).
         Outros, porém, são ainda indefinidos quanto à sua ideologia (O Trovão: A Mente Perfeita, por exemplo). Não obstante, a literatura gnóstica-cristã é predominante na Biblioteca Copta de Nag Hammadi. E pelo menos, a compilação destes tratados em uma única biblioteca é sem dúvida alguma de lavra gnóstica. Estudos paleográficos e outros métodos modernos de datação de textos antigos justificam a datação dessa biblioteca para os séculos III e IV da Era Cristã.
         Pouco se sabe sobre os responsáveis pela formação da Biblioteca Copta de Nag Hammadi, no entanto, alguns tem relacionado a produção da mesma à discípulos de Pacômio, num mosteiro seu próximo a região onde foram encontrados os manuscritos. Embora o próprio Pacômio fosse um cristão ortodoxo, há evidências de que o gnosticismo tinha se infiltrado nos mosteiros egípcios.
         Predominantemente falando, os tratados de Nag Hammadi são gnósticos. Mas o que é era o gnosticismo cristão? O gnosticismo cristão não é fácil de definir, sendo que os pais da igreja de Alexandria (por exemplo, Clemente) têm tendências gnósticas que não foram consideradas heterodoxas.
         Contudo, os gnósticos que foram julgados heréticos não tinham uma visão comum. Na maioria deles, porém, predominavam as seguintes idéias: uma série de Aeóns emanam do Deus-Todo-Perfeito e Auto-Gerado, o Deus criador do Antigo Testamento é mau (Demiurgo), porque conferiu existência à matéria, almas preexistentes foram presas nessa matéria, Jesus veio ao mundo (sem se tornar parte dele) para revelar a essas almas à sua origem divina-celestial, o conhecimento (gnwsiV  [gnosis]) revelado sobre essa origem capacita as almas a fugirem da prisão da matéria.
         O gnosticismo define a salvação em termos de fuga da existência material corpórea através do auto-conhecimento de nossa origem e essência interior divina. Segundo pesquisas mais recentes, o gnosticismo não nasceu no cristianismo, mas é anterior a ele. Contudo, logo que pessoas de idéias gnósticas começaram a se converter ao cristianismo, uma versão gnóstica do Evangelho começou a ser elaborada.
         A interpretação gnóstica do Evangelho de Cristo desencadeou uma nova facção do cristianismo primitivo, o qual concorreu com ele até o III e IV séculos, quando foi totalmente expurgado da Igreja por vários concílios anti-heréticos da Igreja. A atual Biblioteca de Escritos Gnósticos de Nag Hammadi deve ter sido enterrada para proteger os escritos de uma eventual perseguição movida pela Igreja Ortodoxa contra os hereges gnósticos e seus escritos.

  1. O Valor e Contribuição da Biblioteca Copta de Nag Hammadi

         Do ponto de vista histórico, a descoberta dessa biblioteca copta gnóstica nos ajuda ao aumentar os nossos conhecimentos sobre como pensavam e escreviam os gnósticos cristãos do II e III séculos da Era Cristã, de uma maneira diferente daquilo que podíamos obter a partir do que os Pais da Igreja haviam escrito sobre eles.
         A história e compreensão do gnosticismo, tanto cristão, quanto não-cristão, se vê agora, a partir da descoberta de Nag Hammadi, totalmente ampliada e revista em muitos aspectos pelos pesquisadores. Através da descoberta de Nag Hammadi, portanto, podemos entender melhor o gnosticismo e também perceber melhor como eram complexos os conflitos internos da igreja cristã primitiva no que diz respeito às suas doutrinas.
         Sem mencionar que a Biblioteca de Nag Hammadi também traz à tona o conteúdo de muitas obras gregas perdidas e que foram preservadas em tradução copta.
         Do ponto de vista filosófico, a Biblioteca de Nag Hammadi também contribui significativamente. Isto porque os escritos de Zostrianos, Allogenes, Protenóia Trimorfa e Marsanes, todos de orientação filosófica neoplatonista, nos dão informações sobre o neoplatonismo como era entendido naquela época. De modo que além de contribuir para a História das Religiões, com o estudo do gnosticismo, a Biblioteca de Nag Hammadi também contribui para o estudo da História da Filosofia.
         “Na verdade essa Biblioteca copta gnóstica deve ser tomada como uma interpretação da existência, uma resposta para o dilema humano, uma atitude perante a sociedade e que merece ser levada a sério por qualquer pessoa capaz e disposta a abordar assuntos fundamentais.  Essa postura básica tem sido vista até os dias de hoje quase que exclusivamente pela visão míope dos caçadores de heresia, que fazem referência apenas para refutá-la ou ridicularizá-la. Logo, o aparecimento da Biblioteca de Nag Hammadi nos oferece um acesso inesperado para a postura gnóstica como os próprios gnósticos a apresentavam. Ela é capaz de proporcionar novas raízes diante do que já foi desenraizado.”[2]

  1. A Biblioteca Copta de Nag Hammadi e o Novo Testamento

         Um certo proto-gnosticismo parece já ter sido mencionado e combatido no período do Novo Testamante (cf. II Tm.2.18; I Tm.6.20; I Jo.4.2;II Jo 7, etc..). Contudo, os escritos de Nag Hammadi nos oferecem informações sobre um gnosticismo mais desenvolvido e multipluralizado. Não obstante, as descobertas de Nag Hammadi nos ajudam a entender melhor o fenômeno religioso gnóstico que se manifesta de forma tênue no Novo Testamento. Além do mais, também nos ajuda a perceber melhor o conflito entre ortodoxia e heterodoxia no período pos-apostólico, o qual já existia no século I d.C.


[1] Bibliografia: VIELHAUER, Phillip.História da literatura cristã primtiva.Academia Cristã: São Paulo,2005;KOESTER,Helmut.Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.Paulus: São Paulo,2005; DUBOIS,J.D.;KUNTZMANN,R.Nag Hammadi-O evangelho de tomé.Paulus:São Paulo;ROBINSON,James M.A biblioteca de nag hammadi. Madras: São Paulo,2006;CHAVES,Julio César Dias.A biblioteca copta de nag hammadi – Uma história da pesquisa.Orácula:São Bernardo do Campo,São Paulo,2006.Disponível em http://www.oracula.com/;
[2]  James M. Robinson,op.cit.

Um comentário:

  1. Aquilo que só se conhecia através das reformulaçoes e interpretaçoes dos pais da igreja sobre seus escritos,agora está a disposição de qualquer um para sua própia interpretação,pois alguns destes documentos encontram-se no que chamamos "a biblioteca copta gnóstica de nag hammadi",agora pode-se fazer uma crítica diferente da que fez Epifânio bispo de Chipre,quando formula seus tratados entitulando-os de "Panárion"(caixa de remédios),contra este cancer que assolava e pertubava a tradição da igreja primitiva que era guardada pelos pasi da igreja,mas porque este movimento foi tão ameaçador, sendo que foi tão ridicularizado por irineu, um leitor de várias obras gnósticas,eles fizeram uma interpretação exotérica dos evangelhos a ponto de lançarem várias obras pseudograficas com nome de alguns apóstolos,esta interpretação,dependendo da linha gnostica que se dividia em váris ramificaçoes,trazia idéias que para o cristianismo era dogma inegociavel como a ressureição do corpo,para um gnóstico a ressureição do corpo era impossível,pois o corpo é mal,eles entendiam como ressureição o auto-conhecimento ou conhecer-se a sí mesmo e assim estariam aptos a voltarem ao pleroma passando por todos os arcontes e demônios que estão nas dimenções inferiores,pois agora esles tinham a chave de todo o conhecimento ou seja são centelhas do prótopai ou autogerado,isso soa bem mais agradável do que o pensamento cristão que leva o homem a rever todo o seu padrãomoral para evitar o pecado que nao existe para o gnóstico e assim ver os frutos do Espírito Santo,a renúncia do pecado é bem mais difícil do que a idéia de que ele não existe,mais isso é só o início das várias discussões do conflito cristianismo vs gnoóticismo.

    ResponderExcluir