quinta-feira, 21 de julho de 2011

Série ROMANOS:O Evangelho de Paulo II

Forma Literária e Teologia de Romanos

D.F.Izidro

         Sem dúvida, Romanos constitui o ápice da teologia do Apóstolo Paulo. Nenhuma de suas cartas preservadas contém uma exposição mais sistemática, amadurecida e profunda do significado, função e realização do Evangelho na vida daquele que crê em Cristo Jesus.
         O Evangelho de Paulo, como ele costumar denominar (cf.2.16), está aqui descrito, demonstrado e argumentado escrituristicamente; contando ainda com toda a energia, dinamismo de idéias e persuasão do grande apóstolo dos gentios.
         E não obstante os problemas hermenêuticos que os escritos do apóstolo costumam suscitar (cf.IIPe.3.15,16), desde o século II d.C. muitos têm se dedicado ao seu estudo e meditação – de fato, Romanos é o maior legado cristão primitivo da Teologia Paulina. É não só válido estudá-la, como também imprescindível faze-lo.

1. O Envelope Epistolar de Romanos

         De fato, Romanos está elaborada como um longo discurso que, no entanto, se veste da forma epistolar contemporânea, cujo Pré-escrito (remetente, destinatário e saudação) e Conclusão, próprios de uma correspondência, são facilmente perceptíveis (cf.1.1-7;15.14-16.25).
         Romanos, portanto, é deverasmente uma Epístola, isto é, uma carta. Contudo, seu caráter de carta particular se mescla com características e tônicas bastante tratadícias, de modo que a epístola de Paulo aos Romanos é, do ponto de vista do gênero literário, um escrito verdadeiramente híbrido (misto), como o são as outras obras do apóstolo.[1]

2. Estrutura Literária de Romanos – Os Grandes Blocos

         Conforme a opinião da maioria dos exegetas, podem-se isolar na epístola aos Romanos, as seguintes divisões tradicionais:

1.      Rm.1.1-7: Pré-escrito Epistolar (Prólogo)
2.      Rm.1.8-15: Proêmio (“Contato”)
3.      Rm.1.16,17: Tese/Proposição
4.      Rm.1.18-8.39: Justificação pela Fé (Seção Dogmática)
5.      Rm.9-11: Situação e Salvação de Israel (Parêntese?)
6.      Rm.12.1-15.13: Questões Éticas (Seção Parenética)
7.      Rm.15.14-16.27: Conteúdo Pessoal (Epílogo)

         Há poucas divergências sobre este plano global. Contudo, as dificuldades começam quando se trata de subdividir o texto no interior destes blocos e, de modo bem específico, no interior dos primeiros oito capítulos.
         O contratempo de todos esses planos temáticos é que eles repousam sobre a pré-compreensão que o exegeta já possui do texto. Assim, o exegeta pode inserir no texto idéias teológicas, literárias ou históricas que são suas, mas que não provêm absolutamente do texto em si mesmo.
         Isto nos leva a questão sobre se a busca de um plano temático lógico, afinal, não é apenas uma reivindicação inconveniente de espíritos científicos modernos, mas que nada tem haver com a forma literária intrínseca ao texto em si. Eruditos de Paulo argumentam que embora a pesquisa seja positiva, nem sempre conta com as informações adequadas (Quesnel,2004).
         É conveniente perguntarmos, pois, se os escritores antigos não redigiram segundo regras de composição consagradas pelo uso, ligadas à sua cultura ambiente, isto é, uma “convenção literária”.
         Sem dúvida, Paulo é um letrado; um intelectual apegado a duas grandes culturas de seu tempo: a judaica e a greco-romana. Não haveria, então, modos de composição convencionais aos quais ele teria cedido, os quais deveríamos descobrir mediante a análise dos textos?[2]

3. A Retórica Greco-Romana

         Com Efeito, nas Epístolas mais tardias de Paulo, como Gálatas, Romanos e Colossenses, tem sido possível perceber a presença de estruturas literárias e estilísticas próprias da retórica greco-romana.[3]
         Dentro de uma vestimenta epistolar, o autor redige seu texto como um discurso, o qual é composto de forma submissa às regras de composição observadas em obras de referência como a Retórica de Aristóteles (IV a.C.) e a Instituição oratória de Quintiliano (I d.C.).
         Segundo a Retórica greco-romana, toda situação de discurso comporta a presença de três elementos: o orador (autor), o discurso (ou texto) e o auditório (os destinatários).
         Além disso, três fatores de persuasão contribuem para a qualidade do discurso: a autoridade do orador, a argumentação do discurso e as emoções que ele suscita no auditório. Ademais, três gêneros de eloqüência são distinguidos na retórica clássica: o gênero judiciário (diante dos tribunais), o deliberativo (nas assembléias políticas) e o demonstrativo (nas celebrações).
         É claro que a aplicação desses métodos à análise do texto bíblico não precisa ser demasiada. Mas é indubitavelmente útil saber que procedimentos o autor emprega a fim de persuadir seu leitor e como ele estrutura seu texto. O propósito, então, é usar o método a fim de discernir os indícios formais que permitem determinar o plano detalhado de uma epístola, o que os retóricos chamam de dispositio.
         Vejamos, a seguir, o modelo clássico de dispositio conforme é usada na retórica judiciária:
1.  Exordium – introdução da exposição; prepara o auditório, predispondo-o positivamente para o orador. Ponto de contato.
2.  Narratio – relato de fatos dos quais se fala ou escreve.
3.  Propositio – o centro ou tese do discurso. Sintetiza e anuncia palavras e proposição que será desenvolvida subsequentemente.
4.  Probatio – argumentação que contribui para apoiar as propositiones. Prova.
5.  Digressio – eventualmente o autor deixa-se devagar a outras questões.
6.  Peroratio – conclusão: retoma pontos desenvolvidos, apela à emoção do leitor ou auditório.

4. Romanos e a Retórica Greco-Romana

         Convém agora mencionar as contribuições que se podem extrair da retórica greco-romana para a compreensão da epístola aos Romanos. De fato, podemos identificar os mesmos elementos da dispositio retórica, no texto da Epístola, desde o seu início. Vejamos.
         Na epístola aos Romanos, como é típico em Paulo, o endereçamento epistolar é seguido de uma ação de graças (1.8-15), a qual cumpre o papel equivalente de um exordium da retórica clássica.[4]
         Imediatamente após essa ação de graças, seguem-se dois versículos nos quais os exegetas reconhecem a tese ou propositio que rege os capítulos subseqüentes (1.16,17).
         Essa tese geral de 1.16,17 é apresentada a seguir em duas partes: 1.18-3.20 e 3.21-4.25, as quais possuem também suas próprias propositiones (1.18,19:1.20-32;3.21,22:3.23-4.25).
         Na primeira parte (1.18-3.20), a propositio de 1.18,19 é seguida por uma narratio (1.20-32) e uma probatio (2.1-3.20).
         Na segunda parte (3.21-4.25), a propositio de 3.21,22 é seguida por uma narratio (3.23-26), depois pela probatio (3.27-4.25), uma argumentação escriturística com base na experiência de Abraão.
         A segunda grande seção de Romanos (5-8) começa com as propositiones do capítulo 5, as quais são desenvolvidas até o capítulo 9, o qual inicia um grande bloco de 9-11; depois segue-se a parte parenética do texto, a qual também se inicia por uma propositio a se desenvolvida subsequentemente (12.1,2-15.13).
         Segundo a crítica retórica, portanto, o textos devem ser interpretados à luz de seu contexto retórico, isto é, de conformidade com a função retórica que o texto desempenha em determinado contexto da epístola – o que alguns chama de o status retórico do texto.

5. Tópicos Teológicos de Romanos

         Mensagens Essenciais da Epístola – Paulo já havia escrito sobre a salvação gratuita em Cristo, quando da redação de Gálatas. Contudo, isso o fez sob a polêmica anti-judaizante. Nesta Paulo falara sobre a inutilidade da Lei e seu papel desempenhado (Gl.3.23,24). Em Romanos a polêmica parece estar apenas em segundo plano. Aqui Paulo pode escrever de forma mais equilibrada e menos unilateral, esclarecendo até mesmo sobre os privilégios e salvação dos judeus (3.2;9.4;11.24-29).
         Sem dúvida, Romanos não é uma exposição completa da teologia paulina, mas, com base na experiência pregressa do apóstolo, destaca temas fundamentais em toda a sua teologia: transcendência de Deus, do qual tudo vem aos homens como um dom;salvação absolutamente gratuita, baseada na onipotência e misericórdia de Deus; experiência cristã; papel capital da morte-ressurreição de Cristo na salvação e santificação do crente; vida no Espírito e história da salvação.
         A Justiça de Deus / dikaiosunh qeou – (dikaionsýne theoû) - A noção paulina da justiça de Deus se reporta à teologia profética, relacionada à mensagem de consolação (Is.51.5-6,8). O momento histórico dessa revelação da justiça de Deus é a morte de Cristo na cruz e sua ressurreição gloriosa (3.23-25;8.3). Pela sua morte Cristo operou a salvação e a libertação do homem, reconciliando-o com Deus, após liberta-lo do pecado; e pela ressurreição conferiu ao homem a justificação e a vida no Espírito.
         O judeu piedoso andava à procura da justiça;ele procurava sua própria justiça, por meio da Lei (9.31;10.3). Ora, esta justiça ele não a podia atingir pelas suas forças apenas – o homem não pode observar a Lei. A Lei não podia, pois, justificá-lo (Gl.3.21;Rm.7.7s). Somente a Justiça de Deus justifica o homem, de modo totalmente gratuito, sem intervenção das obras da Lei; ela lhe confere uma justiça diferente daquela pela qual ele esperava poder se gabar, resultante apenas da graça de Deus.
         A Fé SalvíficapistiV (pístis) - A fé é a condição única para obter a justiça de Deus; por isso a fé de Abraão, o pai de todos os crentes, é aqui exposta (3.21-4.25). Mas essa fé é uma atitude vital, e não apenas intelectual, em que o homem se empenha totalmente; ele aceita a justiça de Deus, em Cristo, mas obedece plenamente ao chamado de Deus para viver no Espírito (8).
         Embora as obras do homem não o justifiquem, no homem justificado por Cristo, as obras são necessárias como frutos da justiça de Deus (6.15-23;8.9-13;12.1-15.13). Se no regime da Lei os judeu tinha a desculpa de não poder cumpri-la (7.7-25), sob o regime da graça e do Espírito os fieis recebem de Deus o poder de cumprir suas exigências (6.14-15;8.4). Os frutos éticos são evidência de uma vida justificada (12.1,2-15.13).
         A História da Salvação – a realização da salvação humana é graças a iniciativa e plano soberano de Deus. Mesmo o endurecimento de Israel faz parte do plano eterno de Deus, de modo que, no final, estes também serão salvos, pois são eleitos (10.6-13;11.2,15,25-29).

BIBLIOGRAFIA

BROADUS,David Hale.Introdução ao Estudo do Novo Testamento.Rio de Janeiro:Editora Juerp,1983.
CARSON,D.A.;MOO,Dougla;MORRIS,Leon.Introdução ao Novo Testamento.São Paulo:Editora Vida Nova,1997.
CULLMANN,Oscar.A Formação do Novo Testamento.São Paulo:Editora Sinodal,1984.
GUNDRY,Robert H.Panorama do Novo Testamento.São Paulo:Vida Nova,1978.
KUMMELL,W.G.Introdução ao Novo Testamento.São Paulo: Paulus/Teológica,2003.
QUESNEL,Michel.Paulo e as Origens do Cristianismo.São Paulo:Paulinas, 2005.
TERRA,João E.M.Revista de Cultura Bíblica – Cartas de São Paulo.São Paulo:Edições Loyola,2000.
VIELHAUER,Phillip.História da Literatura Cristã Primitiva.São Paulo: Academia Cristã,2005.


[1] Cf.KUMMELL,Werner G.Introdução ao novo testamento.p.318.
[2] Pesquisas nesta direção já foram empreendidas no que tange à retórica semítica e à retórica greco-romana, com fins a compreensão literária das epístolas paulinas. Estas leituras retóricas são definidas como “Novos Métodos de Análise Literária”.
[3] Um verdadeiro marco nesse campo é o comentário de Gálatas de Betz,H.D.Galatians; a Commentary on Paul’s Letter to the Churches in Galatia.Philadelphia,1979. Temos também em língua portuguesa um excelente trabalho do gênero em forma de artigo de autoria de José Roberto Cardoso: 1 Tessalonicenses – Epístola e Peça Retórica.publicado pela Fides Reformata:Mackenzie.Andrew Jumper.
[4] Todavia, esse exemplo nos mostra que Paulo não segue a retórica de modo servil.

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