segunda-feira, 25 de março de 2013

TRADIÇÃO EVANGÉLICA SINÓPTICA

OS EVANGELHOS SINÓPTICOS:
HISTÓRIA E LITERATURA

Prof.Denes Izidro © 2009[1]


Bitencourtt,B.A Forma dos Evangelhos e a Problemática dos Sinópticos.São Paulo: Imprensa Metodista;Black,Aland David.Porque 4 Evangelhos?.São Paulo: Editora Vida, 2004;Bruggen,Jakob Van.Cristo na TerraOs Evangelhos como História.São Paulo : Cultura Cristã;Carson,D.A;Moo,Douglas J.&Morris, Leon. Introdução ao Novo Testamento.São Paulo:Vida Nova,1997; Dattler, Frederico. Sinopse dos Quatro Evangelhos.São Paulo:Paulus, 1998; FABRIS,Rinaldo.Os Evangelhos.São Paulo: Loyola, 1990.vls.I,II;Konings,Johan.Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e  Lucas e a Fonte Q.São Paulo:Loyola,2005; Marconcini, Benito.Evangelhos Sinóticos – Formação, Redação e Teologia.São Paulo:Paulinas,1998; Miranda, Osmundo.Estudos Introdutórios nos Evangelhos Sinóticos.São Paulo:Cultura Cristã (CEP),1989; MONASTÉRIO,Rafael Aguirre; CARMONA,Antonio Rodrigues Carmona. Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos.São Paulo:Ave Maria,2000.vl.6[2];Moracho,Felix.Como Ler os Evangelhos.São Paulo: Paulus,1997; Wegner, Uwe.Exegese do Novo Testamento. São Paulo:Sinodal/Paulus,1998.

1.INTRODUÇÃO AO ESTUDO CRÍTICO DOS EVANGELHOS SINÓPTICOS

          1.1.Panorama Histórico

l        Os Evangelhos canônicos foram estudados sempre com muita freqüência ao longo da história da Igreja,contudo a abordagem propriamente científica a eles só se deu a partir do século XIX,quando são lidos sob perspectivas crítico-históricas.
l        Os próprios “críticos” dos evangelhos canônicos abordaram os mesmos também de forma pré-científica e dogmática (ex.Celso,II d.C.).
l        Mas com o surgimento do Iluminismo no século XVIII,a razão também foi metodologicamente aplicada à teologia e aos estudos bíblicos,inclusive os Evangelhos.
l        Inaugurando essa perspectiva crítico-histórica H.S.Reimarus (1772,cuja obra De las pretensiones de Jesús y de sus discípulos foi publicada dez anos depois de sua morte por G.E.Lessing) defendeu a tese de que Jesus pretendia ser um messias político e assim libertar o povo judeu do jugo romano,mas fracassou sendo executado pelas autoridades.Seus discípulos,no entanto,roubaram seu cadáver e para ocultar tal fracasso deturparam nos Evangelhos o real propósito e natureza de Jesus de Nazaré,de modo que a imagem de Jesus nos Evangelhos é mera criação de seus discípulos.
l        G.Paulus (1761-1851),malgrado descordasse da posição de Reimarus,empenha-se em explicar racionalmente,e com admirável simplismo,a narrativa evangélica:ele explica,por exemplo,a ressurreição de Jesus sob a alegação de que ele não estava morto,mas apenas havia desmaiado e fora reanimado pelo frio da pedra.Os eventos sobrenaturais narrados nos evangelhos teriam sido tão somente eventos naturais mal compreendidos.
l        D.F.Strauss,autor de uma Vida de Jesus (1835),sustentava que não seria necessário recorrer ao sobrenatural para explicar a vida de Jesus como fazem os dogmáticos,nem à teoria da fraude como fez Reimarus,e nem mesmo à explicações naturalistas como as de Paulus,mas tão somente à uma interpretação mítico-simbólica da vida de Jesus:Para Strauss os evangelhos não são história de Jesus,mas uma interpretação mítica de sua pessoa feita pelos cristãos;ele entendia,não obstante, que sob essa roupagem mítico-simbólica haviam verdades perenes para o homem.
l        Os trabalhos críticos na modernidade começam com C.H.Weise (1801-1866) e C.G.Wilke que chegaram de modo independente em 1838 ao mesmo resultado: na base da tradição evangélica há dois documentos,Marcos e Q .Daí se origina a teoria das duas fontes.H.J. Holtzmann, posteriormente, sustentou contra a escola de Tubingen (F.C.Baur) que Marcos não era uma síntese de Mateus e Lucas,mas o evangelho mais antigo e de maior valor histórico.A parti daí proliferam os estudos sobre Marcos e a fonte Q e as Vidas de Jesus,fundamentadas sobre a suposta confiabilidade histórica de Marcos.Nesse período,estudiosos mais críticos buscam pelas fontes utilizadas por esse evangelho (J.Weiss;J.Welhausen).
l        Contudo,a valorização histórica de Marcos muda radicalmente com a obra de W.Wrede (1901),que defende a tese de que Marcos é um relato elaborado por motivação teológica e não uma narração histórica próxima da realidade.O segredo que Jesus impõe com freqüência em Marcos - “Segredo Messiânico”- não corresponde à realidade da vida de Jesus,mas fora criado por Marcos para explicar o abismo entre a vida histórica de Jesus,que jamais fora messiânica,e o culto posterior que o proclama como tal.Para Wrede,Marcos construiu uma obra teológica,não histórica.Ele declara:
Considerado em seu conjunto,o Evangelho de Marcos não oferece uma imagem histórica da vida real de Jesus.Somente alguns vestígios escassos de tal imagem se têm conservado em sua narração,que reflete uma concepção supra-histórica,teológica de Jesus.Nesse sentido,o Evangelho de Marcos pertence à história dos dogmas.[3]
l        A Escola Liberal dá pouca confiança ao Evangelho de Marcos e prefere fundamentar-se na fonte Q.A Escola escatológica fundamenta-se tanto em Marcos como na fonte Q,mas adota uma posição diferente:segunda ela,a essência do cristianismo não é uma moral,mas uma grande esperança,pois Jesus considerava iminente a irrupção da plenitude definitiva do reino de Deus (A.Schweitzer;A.Loisy).Loisy separa o Jesus da história do Cristo da fé – a igreja é um obstáculo que impede-nos chegar de fato a Jesus.
l        Não obstante todos esses excessos “críticos” no estudo dos Evangelhos,houve quem soube dar o devido valor aos métodos crítico-históricos e considerar a necessidade de uma utilização mais isenta dos mesmos,e mesmo assim sob perspectiva cristã. O pioneiro desta empreitada quiçá tenha sido o Pe.Lagrange (1855-1938),fundador da Escola Bíblica de Jerusalém,mas não sem dificuldades e incompreensões.[4]Estudiosos conservadores,tanto católicos quanto protestantes,estão cada vez mais receptivos à pesquisa científico-histórica das Escrituras.
l        Descobriu-se que a ferramente crítico-histórica fora mal aplicada e mal definida.Para muitos “crítica” significava desprezo,condenação,desqualificação histórica dos Evangelhos.Mas a correta acepção do termo “crítica” relacionada à pesquisa histórica da Escritura é definida como segue pelos seguintes estudiosos crítico-históricos:

Esse método (...) chama-se ‘crítico’ não por criticar a Bíblia ou procurar descobrir erros em seu texto, mas porque usa critérios científicos para julgar o texto o mais objetivamente possível, no que diz respeito aos aspectos históricos e literários, empregando todos os estilos de crítica literária (de textual a redacional), e para comentá-lo como expressão do discernimento humano.”
 Joseph A. Fitzmyer[5]

“(o trabalho de Crítica consiste em) fazer julgamentos inteligentes sobre questões históricas, literárias, textuais e filológicas que devem ser enfrentadas ao cuidar da Bíblia, à luz de todas as evidências disponíveis, em que se reconhece que a Palavra de Deus transmitiu-se aos homens pelas palavras de homens em determinadas situações históricas”

George Eldon Ladd[6]


l        A crítica histórica se bem aplicada traz à luz o ensinamento mais profundo e genuíno dos Evangelhos,recolocando o leitor moderno no contexto e ambiente histórico-social do escritor,além de reconhecer o valor e importância histórica dos Evangelhos na pesquisa de Jesus e do cristianismo primitivo.Tal método deixou claro que os Evangelhos devem ser estudados não só em perspectiva literária,mas criticamente histórica,desvenda-lhes as origens e formação.

1.2.Metodologia Histórico-Crítica dos Evangelhos

l        Distribuídos a seguir estão os passos da Exegese do método histórico-crítico tradicionalmente usados no estudo científico dos Evangelhos sinópticos.[7]
l        Crítica Literária: embarca um sentido mais restrito que o usado na teoria literária: a busca das fontes escritas e/ou orais por detrás dos Evangelhos (e/ou outros escritos antigos).O método pressupõe,evidentemente,o largo e complexo uso de fontes pelos evangelistas (e demais autores neotestamentários);a comparação sinóptica é uma das ferramentas mais importantes desse método para a determinação e explicação do uso de fontes.A hipótese das 2 fontes (Marcos e Q) são produto dessa investigação.
l        Crítica da Forma (Formgeschichte): estuda as tradições evangélicas em seu período pré-literário,isto é,antes de serem inseridas na redação evangélica.Trata,então,da pré-história oral das perícopes evangélicas a partir de sua forma literária.Também conhecida como “morfogenética”- estudo e evolução das formas literárias.Identificar a forma,desvendar sua origem e função original é tarefa desse estudo. Os pioneiros da formulação e uso desse método aplicado aos Evangelhos são K.L.Schmidt,R.Bultmann e M.Dibelius.
l        Crítica da Redação (Redaktionsgeschichte): o estudo do trabalho redacional dos evangelistas – especiaficações técnico-metodológicas sobre como os evangelistas manipularam suas fontes,configurando-as de acordo com seus interesses teológicos.Também conhecida como “História da Redação”,e mais recentemente como “análise da composição” dos Evangelhos.Uma reação retificadora do método anterior – a Formgeschichte:Os evangelistas ao invés de meros compiladores,são verdadeiros teólogos e escritores.
l        Crítica Histórica: estudo sobre a historicidade dos Evangelhos a partir de “critérios de historicidade” bem definidos pelos pesquisadores.Dentre eles: “o critério da múltipla atestação”, “o critério do constrangimento”, “o critério da descontinuidade”,etc.

1.3.Novas Metodologias no Estudo Crítico dos Evangelhos

l        Segue-se uma síntese dos métodos de estudo dos sinópticos surgidos nos últimos anos relacionados aos avanços sobretudo da lingüística e de outras ciências.
l        Crítica da Narrativa: muito comum nos meios anglo-saxônicos,este método aplica aos evangelhos as mais atuais teorias lingüísticas de análise de narrativas.Estuda cada obra evangélica no seu estado atual,mas partindo de seu caráter narrativo que gira em torno de uma trama e vários personagens. Parte,então,da situação atual do texto no qual todos os elementos contribuem para uma unidade de sentido.
l        Crítica do Leitor-Resposta: complementando o estudo da narratividade,esse método considera a participação do leitor na construção do sentido do texto.Estuda-se as estratégias presentes numa narração para provocar determinadas  respostas do leitor.Consideram o texto como elemento de comunicação que afeta as expectativas dos leitores.Existe sempre um “leitor implicado” no relato ao qual a narração tem presente e a quem,de vez em quando,dirige-se expressamente (Mc.7.3;13.14),o qual sabe de antemão de algumas coisas (Mc.1.1,11) e em quem se deseja provocar uma determinada resposta.Para esse tipo de abordagem aos evangelhos é preciso considerar os mesmos como unidades narrativas e usar metodologias afins.
l        Análise Estrutural: esse método fora usado de maneira diversa nos estudos bíblicos.Antes de tudo,o estruturalismo foi usado do ponto de vista exclusivamente sincrônico,mas não diacrônico na exegese: a leitura se fixa no estado atual do texto bíblico,sem se interessar por sua gênese histórica.É uma consideração meramente formal do texto não se preocupando nem com sua dimensão referencial histórica,nem com “extrair” idéias teológicas,nem com a seqüência temporal da narratividade.Esforça-se para descobrir as relações profundas,subjacentes ao texto em um sistema estruturado:trata sempre das relações de pares opostos e correlativos (ordem-caos;pequeno-grande;alto-baixo),pois todo elemento se identifica pela oposição aos outros e por sua diferença.O método se mostra útil,enquanto não desclassifica os demais na pretensão de exclusividade.
l        Método Sociológico: de modo geral,pretende relacionar as expressões literárias e teológicas com a estrutura social e/ou sócioliterária.Estes estudos podem ser feitos investigando-se os fatores sociais que condicionaram um texto e/ou as funções sociais que este texto exerceu sobre a sociedade;pode-se também estudar o “mundo social” que um determinado texto reflete.O método sociológico pode ser considerado um desenvolvimento do método histórico-crítico,de modo que o conceito de Sitz im Leben como situação típica e recorrente é definido como um conceito sociológico.Não obstante o material paulino seja mais favorável à aplicação deste método,devido proporcionaram mais dados sociológicos,o mesmo também tem sido usado no estudo dos Evangelhos,desde estudos sobre os fatores sóciohistóricos das tradições sinópticas até caracterização sociológica de comunidades destinatárias dos Evangelhos.

1.4.Questões Abertas - O Problema do Gênero Literário dos Evangelhos

l        Diferentemente dos outros escritos neotestamentários,a definição do gênero literário dos Evangelhos é assunto bastante controvertido,mas não menos importante.Pois a idéia que se tem sobre o gênero literário de um texto condiciona decisivamente sua interpretação.Mais ainda,o gênero dos Evangelhos tem algo a ver com o cristianismo primitivo e a cultura de seu tempo.
l        No estudo dos Evangelhos,dois modelos são apresentados como possíveis formas de enquadrar esses escritos quanto ao gênero literário deles: Modelo Evolucionista e Gênero Literário “sui generis” e Modelo Analógico e Gênero Literário homologável em seus tempo.

1.4.1.Modelo Evolucionista e Gênero Literário “sui generis”

l        A opinião de que os evangelhos são um gênero literário único e de criação cristã é muito desenvolvida na atualidade.
l        H.Koester mantém essa posição:para ele os evangelhos são o desenvolvimento do que Paulo denominou o “Evangelho”,o kerigma da morte e ressurreição de Jesus (1Co.15.1ss.);são os evangelhos,portanto,produto de uma determinada tradição cristã primitiva originada no seio da Igreja.
l        B.Gerhardsson também entende que os evangelhos são um gênero literário sem paralelos e de criação exclusivamente cristã.Sublinha a continuidade entre a tradição oral e as obras escritas a ponto de deixar pouco espaço para os trabalho dos evangelistas.Gerhardsson compartilha com Koester a idéia de que os evangelhos são produto da evolução da tradição e que não têm paralelos literários contemporâneos,mas discorda deste por acreditar que essa tradição remonta a Jesus,diferentemente de Koester que acredita ser a tradição meramente um kerigma da comunidade pós-pascal.
l        Não obstante corrija a opinião daqueles que acreditam serem os Evangelhos uma autogeração a partir do kerigma,C.H.Dodd também sustenta a originalidade cristã dos mesmos uma vez que acredita serem os evangelhos não mera evolução do kergima,mas uma explicação do mesmo.A partir do kerigma,conforme está descrito em Atos 10.37-43,Marcos teria inventado o gênero literário “evangelho”,servindo de modelo para os demais escritores.Contudo,a identificação da forma evangélica com o suposto discurso kerigmático não pôde ser conclusivamente comprovada.
l        Assim,a criatividade cristã primitiva exclusiva do gênero literário “Evangelho” não pôde ser comprovada.



1.4.2. Modelo Analógico e Gênero Literário homologável em seu tempo

l        Alguns estudiosos acreditaram que à semelhança dos demais escritos neotestamentários,os evangelhos também devem ser classificados em algum gênero literário vigente em seu tempo.A partir daí a busca por paralelismos de gênero literário com os Evangelhos tem caminhado nas seguintes duas direções:

1.4.2.1.Paralelismos Semíticos

l        As seguintes características comuns têm sido apontadas para aproximar os Evangelhos do Antigo Testamento: nos livros históricos não há referência ao autor,narra-se na terceira pessoa e existe uma relação com a tradição.
l        M.G.Kline[8] pensa que foi usado o modelo do Êxodo na narração evangélica,devido sua combinação de narração e discurso.Para D.Lürmann[9] ,Marcos concedeu seu evangelho segundo o modelo oferecido pelo Antigo Testamento,da biografia de um “justo”.N.Perrin[10] observa os detalhes apocalípticos de Marcos e considera esse evangelho como um drama apocalíptico,e o compara com as cartas  do Apocalipse de São João.Para M.D.Goulder[11],os evangelhos têm uma origem litúrgica e pertencem ao gênero do midrash,explicação rabínica do Antigo Testamento.Contudo,os Evangelhos não podem ser catalogados simples e totalmente como midraxe.

                   1.4.2.2.Paralelismos Helenísticos

l        Foi novamente proposta uma analogia com a bibliografia greco-romana. Muitos estudiosos compartilham dessa posição,especialmente os anglo-saxônicos,defendida e elaborada por C.H.Talbert.[12] Talbert estabelece a classificação dos diversos tipos de biografias helenísticas e aproxima os evangelhos de um que pretendia corrigir imagens defeituosas do mestre e apresentar uma forma correta de se vincular com ele. D.E.Aune[13] também entende que os evangelhos são um subtipo da biografia greco-romana,a qual recorre à história de um personagem como lugar  onde se realça suas virtudes e atitudes morais;são tomadas grandes liberdades historiográficas e lhes interessa mais a plausibilidade do que a narram do que sua correspondência com os fatos. As biografias helenistas observam o passado em função dos ensinamentos para o presente,de modo que funcionalmente há uma semelhança importante com os evangelhos,pois os evangelhos são teologia em forma de narrativa;os valores e as crenças cristãs são personificadas e historicamente legitimadas  na pessoa de Jesus. Não obstante, o relato da paixão teve uma importância capital na origem dos evangelhos,pois dele procedeu a trama que articulou toda a obra evangélica.



2.OS EVANGELHOS SINÓPTICOS

A. Definição

    • Os três primeiros evangelhos foram pela primeira vez chamados “Evangelhos Sinóticos” por J.J. Griesbach, no final do século XVIII. O adjetivo “sinótico” vem do grego suno/yij (synopsis), que significa “visão conjunta”. Griesbach escolheu a palavra devido ao alto grau de semelhanças entre Mateus, Marcos e Lucas em suas apresentações do ministério de Jesus. Essas semelhanças, que envolvem estrutura, conteúdo e enfoque, são visíveis mesmo ao leitor desatento. Elas servem não apenas para unir os três primeiros evangelhos, mas também para distingui-los do evangelho de João.

           B. Evidência Sinóptica

    • Mateus, Marcos e Lucas estruturam o ministério de Jesus de acordo com uma seqüência geográfica geral: ministério na Galiléia, ministério na Judéia e o ministério final em Jerusalém. Essa seqüência está praticamente ausente em João, evangelho que se concentra no ministério de Jesus em Jerusalém durante suas visitas que periodicamente fazia a cidade.
    •  Quanto ao conteúdo, os três primeiros evangelistas narram muitos dos mesmos acontecimentos, concentrando-se nas curas, exorcismos e ensinos por meio de parábolas realizados por Jesus. João, embora narre algumas curas significativas, não traz qualquer relato de exorcismo nem parábola.
    •  Além disso, muitos dos acontecimentos que consideramos característicos dos três primeiros evangelhos estão ausentes em João: o envio dos doze, a transfiguração, o sermão profético, a narrativa da última ceia.
    • Ao apresentarem Jesus constantemente em atividade e ao sobreporem ações – especialmente milagres – e ensinos curtos, os primeiros evangelistas criam um clima de ação intensa e ininterrupta. Isso contrasta claramente com o clima mais contemplativo de João, que narra bem menos acontecimentos do que os evangelistas sinóticos e prefere apresentar Jesus fazendo longas dissertações em vez de parábolas curtas ou declarações breves e expressivas.

C. Formação dos Evangelhos Sinópticos

          Podemos distinguir três Etapas ou Estágios na origem dos Evangelhos:

          1.O Acontecimento-Jesus como Origem da Tradição Evangélica Jesuína

l        Jesus surgiu no horizonte palestinense,e anunciava o reino de Deus, centralizando seu ministério em Cafarnaúm,às margens do lago da Galiléia – um ministério itinerante (cf.Mt.9.1;8.20).Historicamente falando, parece não haver dúvidas de que Jesus teve características de mestre e profeta e as pessoas o reconheciam assim (Mc.9.5;10.51;10.17).[14]
l        Ao seu redor se formou um grupo de discípulos,em cujo seio cultivou-se uma tradição das palavras de Jesus[15].
l        A pedagogia popular na antiguidade era muito mais conservadora e se fundamentava nas três instituições-chave:a casa paterna,a sinagoga e a escola elementar. Nas três,a aprendizagem tinha um elemento central: a memorização. A cultura da memória e da tradição impregnavam os discípulos de Jesus. Mais ainda uma consideração formal da tradição evangélica descobre,em grande parte,que fora marcada para poder ser memorizada com facilidade e transmitida com fidelidade: Jesus faz uso de imagens,metáforas,simbolismos,expressões enigmáticas e penetrantes,uma forma plástica de falar que se grava na memória com maior facilidade do que as abstrações. Por suas características formais,por sua concisão e força,por seus próprios aspectos enigmáticos,o ensinamento de Jesus revela,com freqüência,sua intenção de ser repetido e memorizado.

          2.A Reinterpretação da Tradição Jesuína na Comunidade Pós-pascal

l      O que aconteceu com a tradição pré-pascal que começou a formar-se das palavras e atos de Jesus?A comunidade pós-pascal a conserva,transmite e também reinterpreta essa tradição.
l      Para a comunidade pós-pascal,não bastava recordar os ditos e atos de Jesus,pura e simplesmente,pois era preciso ouvi-los no presente.Por isso ela atualiza a tradição recebida.
l      Diversos fatores sociais exigiam a adaptação e a atualização da tradição evangélica.[16]A própria tradução do aramaico para o grego implicava uma adaptação lingüística.Também se fizera necessária uma adaptação social à medida que algumas tradições nascidas no ambiente rural da Palestina se aclimatavam á civilização urbana.Era inevitável também uma adaptação cultural,porque os costumes semíticos da Palestina não eram iguais aos vigentes nos grandes centros helenísticos;por exemplo,a versão marcana das palavras de Jesus sobre o divórcio apresenta a possibilidade não somente de o homem abandonar sua mulher (conforme a versão semítica mateana,19.9;5.31-32),mas,também,a possibilidade de a mulher abandonar o marido,o que corresponde aos costumes greco-romanos (Mc.10.11-12).A existência de novas comunidades cristãs com seus problemas particulares e as novas circunstâncias exigiram uma adaptação eclesial.Basta comparar,por exemplo,a versão da parábola da ovelha perdida na versão lucana,que visa justificar o comportamento de Jesus em seu vínculo com os pecadores (Lc.15.4-7),e na versão mateana,obviamente eclesiástica (Mt.18.12-13).
l      Essa tradição atualizada é,não obstante,fiel,pois mantém a vinculação com o Jesus do passado e tem segurança pela presença de testemunhas oculares no período de sua circulação – uma alteração essencial dos fatos,portanto,não seria tolerada nesse processo.[17]
l      No processo de reinterpretação e/ou atualização da tradição jesuína, o cristianismo primitivo fez largo uso do Antigo Testamento,pois sendo judeus,os primeiros discípulos de Jesus tinha o mesmo como sua Bíblia,isto é,como Palavra de Deus,através da qual era fundamental interpretar o evento-Jesus como cumprimento dessa mesma Escritura.A Páscoa,portanto,deu-lhes nova luz e novos olhos para lerem as Escrituras de forma cristocêntrica.
l      Para realizar essa tarefa,a comunidade fez uso das técnicas exegéticas judaicas,as quais são necessárias para compreendermos adequadamente o Novo Testamento e os Evangelhos,uma vez que os mesmos estão impregnados de referências e evocações ao Antigo Testamento,à literatura Judaica intertestamentária e à tradição Judaica.
l      Para o judeu, “o que não está na Torá não está no mundo”,diz um provérbio.Na Bíblia (AT) está tudo e pode-se  encontrar luz para qualquer circunstância da vida;a dificuldade está em descobri-la. Assim se explica esse constante esquadrinhamento dos textos veterotestamentários,próprios da religiosidade judaica.
l      A comunidade pós-pascal atribui às palavras de Jesus o mesmo conceito e autoridade das Escrituras do AT,de modo a interpretá-las e contextualiza-las em situações novas e diversificadas,assim como faziam com o Antigo Testamento. Buscavam nos ditos de Jesus,através de reelaborações e adaptações,luz para novas situações. Dessa forma,às vezes a comunidade faz atualizações das palavras de Jesus que vão além do que historicamente Jesus tinha dito (Lc.4.1-13;Mt.4.1-11;Mc.1.14,15;Lc.4.16ss.).
l      Portanto,a referência ao Antigo Testamento está presente em todos os textos dos evangelhos,porque,tanto para os que estão na origem da tradição – Jesus e a comunidade pré-pascal – como para os que a transmitiram em todas as etapas,era fundamental situar cada episódio da vida de Jesus no plano de Deus e como seu cumprimento. É fundamental,então,na interpretação dos evangelhos,perguntar-se sempre por seu substrato veterotestamentário, considerando-se as técnicas de interpretação do Antigo Testamento no judaísmo intertestamentário.

          3.A Redação Evangélica da Tradição Jesuína

l      Como verdadeiros autores/redatores/teólogos,os evangelistas recolhem e transmitem a tradição jesuína existente na Igreja,a qual fora conservada e reelaborada por ela sob a luz da pós-páscoa.O trabalho redacional dos evangelistas pode ser descrito como segue:
l      Seleção de dados da tradição jesuína oral e/ou escrita: João e Lucas deixam claro que fizeram uso de fontes e que não tinha a pretensão de escrever tudo,mas fizeram uma seleção inteligente e motivada do material que lhes era disponível (Jo.20.30,31;21.15; Lc.1.1-4).
l      Sintetizações da tradição Jesuína: construíram sínteses recolhendo diversas fontes e reelaborando-as com criatividade literária (Mt.5-7;Mt.8.14,15;Mc.1.29-31;7.24-30; Mt.15.21-28 etc.).
l      Adaptações da tradição jesuína às necessidades das diversas comunidades: Uma mesma tradição discursiva ou narrativa é utilizada de modo distinto para atender à situação da comunidade destinatária do evangelista (Mt.18.12-14;Lc.15.5-7;Mt.7.7-11;Lc.11.9-13).

       






 D. Descrição Panorâmica dos Evangelhos Sinópticos

A. Marcos - O Evangelho do Filho de Deus e Messias Sofredor

Autoria: João Marcos (a partir das Reminiscências de Pedro)
Data: 50-60 d.C.
Destinatários: Cristão Gentios (Romanos?)
a)     Marcos tinha claramente um público gentio em mente, por isso explica expressões em aramaico que utiliza (3.17;5.41;7.11,34;14.36;15.34).
b)     Também utiliza expressões que refletem o latim, ou latinismos (12.42;15.16).
c)      Os judaísmos de Marcos são um reflexo do escritor e de sua fonte (Pedro).
Local: A partir das evidências acima mencionadas, Roma tem sido a mais aceita.
Propósito: Revelar a Identidade de Jesus Cristo.
Análise do Livro:

l        Prólogo Temático: O Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. 1.1-13
l        Jesus Invade o Deserto e a Cidade com Boas Novas. 1.14-8.26
l        Jesus Invade a Cidade Hostil de Jerusalém. 8.27-15.47
l        O Epílogo Inacabado (16.1-8)

B. Mateus - O Messiado de Jesus e sua doutrina como a regra do Discipulado Cristão

Autor: Mateus-Levi
Data: 60-70 d.C.
Local: Antioquia da Síria ou Palestina
Destinatário: Judeus Cristãos (palestinenses?), conforme indica o teor judaico do Evangelho.
Propósito: Instrução Catequética da Igreja e Revelação da Messianidade de Jesus
Esboço Panorâmico:
l      O Nascimento e  Preparação de Jesus. 1.1-4.16.
l      O Ministério Público de Jesus na Galiléia. 4.17-16.20.
l      O Ministério Privado de Jesus na Galiléia. 16,21-18.35.
l      O Ministério de Jesus na Judéia. 19.1-25.46.
l      A Paixão e a Ressurreição de Jesus. 26.1-28.20.

C. Lucas – Jesus, O Salvador do Mundo na História da Salvação

Autor: Lucas, cooperador e companheiro de Paulo (Cl.4.14).
Data: 60-62 d.C.
Destinatários: Teófilo/Cristãos Gentios (1.1-4).
Propósito: Fundamentar Historicamente o Evento Cristo (1.1-4).
Local: Grécia, Cesaréia, Alexandria?
Esboço Panorâmico:

I.                   Prólogo: Um Relato Confiável da História da Salvação. 1.1-4.
II.                A Preparação para O Ministério de Jesus. 1.4-4.13.
III.             Jesus Proclama a Salvação na Galiléia no Poder do Espírito. 4.14-9.50.
IV.             Da Galiléia a Jerusalém: O Discipulado. 9.51-19.27.
V.                Chegada ao Destino: Morte e Ressurreição em Jerusalém. 19.28-24.53.





[1]   Exegeta e Historiador do PaleoCristianismo , professor e pesquisador nas áreas de Literatura Cristã Primitiva,Contexto Histórico-Literário, Língua, Literatura, Exegese, Teologia do Novo Testamento e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário.© todos os direitos autorais desta obra devem ser preservados.
[2]    Essa obra de CARMONA e MONASTÉRIO, constitui a principal fonte bibliográfica para esse texto.
[3]    Das Messiasgeheimnis in den Evangelien,zugleich ein Beitrag zum Verständnis des Markusevangelliums (Gottingen 1901),pg.131.
[4]    No âmbito protestante,G.E.Ladd também fora um dos estudiosos crítico-históricos de linha conservadora a “quebrar o tabú” do método histórico-crítico e sua utilização positiva nos estudos bíblicos evangelicais.
[5]    Cf. J..A.Fitzmyer,A bíblia na igreja,p27.
[6]    The New Testament and Criticism, citado IN: Descobrindo o novo testamento, Walter A.Elwell & Robert W.Yarbrough,p.155.
[7]    Para mais informações sobre os métodos aqui esboçados,veja:Köester,Helmut.Introdução ao novo     testamento: história e literatura do cristianismo primitivo.São Paulo:Paulus,2005.vol.2.; Schnelle,Udo.Introdução à  exegese do novo testamento.São Paulo:Loyola,2005;Silva,Cassio Murilo Dias da.Metodologia de exegese bíblica.São Paulo:Paulinas,2003.2ª Edição.;Wegner,Uwe.Exegese do  novo testamento.São Paulo: Sinodal/ Paulus,2002;Mainville,Odette.A Bíblia à luz da história:Guia de exegese histórico-crítica.São Paulo:Paulinas,1999.
[8]    The Old Testament Origins of the Gospel Genre em The Westminster Theological Journal XXXVIII (1975-1976),1-27.
[9]    Biographie des Gerechten als Evangelium.Vorstellungen zu einem Markus-Kommentar em WuD NF14 (1977),25.30
[10]  N.Perrin,The literary Gattung Gospel – some observations em Exp Tim 82 (1970),4-7.
[11]  Midrash an Lection in Matthew (Londres 1974).
[12]  What is a Gospel? The genre of the canonical Gospel (Filadelfia 1977);Biographies of Philosophers and rulers as Instruments of Religiious Propaganda in Mediterranean antiquity,em ANRW II.16.2,1619-1651.
[13]  The New Testament in its Literary Environement (Filadelfia 1986).
[14]  Somente após a destruição de Templo de Jerusalém,em 70 d.C.,quando surge,então,um judaísmo normativo e mais uniforme,centrado na lei,o termo “rabbi” se transforma num título e surge a ordenação de rabinos.Antes disso,o termo tem sentido meramente não-titular de “meu senhor”, “meu mestre”.Assim,portanto,o aplicavam a Jesus.
[15]  Tanto nos círculos proféticos do judáismo como ao redor dos mestres reuniam-se discípulos e formavam-sem tradições.
[16]  G.Segalla,Panoramas del Nuevo Testamento (Estella 1989),205.
[17]  A intenção de garantir a tradição ilustra-se na fórmula receber-entregar,empregada tecnicamente pelos judeus para assegurar a fidelidade da transmissão.Paulo,por exemplo,faz uso dessa fórmula no uso de duas tradições evangélicas (1Co.15.3;11.23).

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