sábado, 15 de fevereiro de 2014

Introdução ao Profetismo Bíblico
 
D.F.Izidro

1. O Profetismo no Mundo Antigo1
 
1.1. Consultando a Divindade
 
No mundo antigo, tudo pertencia à ordem do religioso. Isto explica porque se consultava a divindade sobre toda e qualquer questão. Todos os setores da vida inspiravam a consulta à divindade por intermédio dos profetas com o fim de saber sua vontade sobre variados assuntos.
 
Uma das preocupações essenciais do homem era a de conhecer a vontade dos deuses; isso pressupõe, portanto, a possibilidade de a divindade comunicar aos homens sua vontade. Os profetas bíblicos são, portanto, representantes de um fenômeno muito antigo e conhecido já na Mesopotâmia e no Egito antes mesmo da história patriarcal, desde o terceiro milênio antes de Cristo.
 
1.2. O ofício dos antigos profetas
 
O termo “profeta”, vem do grego  (profetes [profeta]) e significa aquele que fala na frente ou em lugar de outrem; trata-se de um representante e/ou porta-voz da divindade diante dos homens, portanto2. Antes mesmo da civilização grega e da tradição bíblica israelita, já existia e atuava a profissão de profeta.
 
São muitas as semelhanças do profetismo pagão antigo pré-bíblico com o profetismo bíblico, especialmente quanto às fórmulas utilizadas, as técnicas, alguns conceitos e aquilo que pode se chamar de “experiência profética”. No entanto, o profetismo bíblico se distingue radicalmente do profetismo pagão antigo no que diz respeito ao conteúdo de seus oráculos e ao fato de que não se funda ou se limita à mera consulta dos homens aos deuses para obter respostas – o Deus de Israel pode e costuma comunicar-se e revelar sua vontade por sua própria e soberana iniciativa.
 
2. O Profetismo no Israel Antigo
 
2.1. A terminologia do profetismo bíblico Segundo Sicre (2008,p.74), constitui-se em problema terminológico o fato de que a Bíblia utilize diferentes termos para referir-se ao que nós conhecemos por um único título – profeta. Os diferentes termos utilizados pela Bíblia Hebraica para referir-se a esse personagem que conhecemos como profeta estão reunidos em duas passagens bíblicas significativas: 1Sm.9.6-9; 1Cr.29.29. Contemplaremos como segue uma definição panorâmica dos diversos termos na ordem de seu aparecimento escriturístico, segundo Sicre (2008,ps.74-92).
 
2.1.1. Vidente ro’eh
 
O termo aparece 11 vezes na BH. Em quatro dessas aparições referindo-se a Samuel (1Sm.9.9,11,18,19), uma ao sacerdote Sadoque (2Sm.15.27) e também em Isaías 30.10, no plural – “videntes”. O episódio de Samuel define o termo: “um homem que conhece coisas ocultas, e que se pode consultar dando-lhe uma gorjeta.”3 Em Isaías, refere-se a um grupo que mediante suas visões e palavras recorda ao povo seu compromisso com Deus; não aparecem aqui como pessoas consultadas para resolver problemas pequenos, como o das jumentas de Saul, mas sobre questões de interesse nacional, confrontando seus concidadãos.
 
2.1.2. Visionário hozeh
 
O termo “visionário”, usado por Sicre para diferencia-lo de “vidente”, ocorre em 16 passagens escriturísticas. Em 2Sm.24.11, referindo-se a Gad, parece sugerir que a missão deste profeta era a de servir ao rei com suas visões; também o cronista usa o título “visionário do rei” aplicado a Emã (1Cr.25.5) e iditum (2Cr.35.15). Em Is.29.10, os visionários são mencionados em paralelismo com os profetas, como recursos do povo de Israel para orientar-se corretamente; deixa-los às cegas seria o maior castigo de Deus ao povo. A importante função religiosa dos visionários fica patente a partir de textos como 2Rs.17.13; e sua valentia e intrepidez em 2Cr.33.18, contra o ímpio Manassés.
 
2.1.3. Homem de Deus ish elohim Mais frequente que os termos anteriores, esse aparece 76 vezes, 55 só no livro dos Reis; na maioria das vezes refere-se a personagem conhecido, como Elias (29x), Elias (7x), Moisés (6x), Samuel (4x), Davi (3x), Semeías (2x),Ben-Joanã (1x); também aplicado a personagens anônimos (1Sm.2.27; 1Rs.13,17x; 1Rs.20.28;2Cr.25.7,9). Em época tardia, o título fora usado em sentido honorífico para designar Moisés (Dt.33.1;Js.14.6;Sl.90.1;Ed.3.2;1Cr.23.14;2Cr.30.16) e Davi (2Cr.8.14; Ne.12.24,36); nesse caso, o termo perde o interesse profético. Em síntese, a tradição bíblica traz que o homem de Deus possui uma relação estreita com o Senhor que pode operar os maiores milagres, não estando o tema da transmissão da palavra de Deus ausente; não se trata de uma palavra que anuncia o futuro ou exige uma mudança do presente, mas a palavra poderosa que multiplica o azeite da viúva, ressuscita mortos,etc.; Após o primeiro milagre de Elias, a viúva de Sarepta se dirige a ele como “homem de Deus”; e quando o mesmo profeta ressuscita seu filho, ela, mais convicta, declarara: “Agora reconheço que és um homem de Deus e que se cumpre a palavra do Senhor, que tu pronuncias!” (1Rs.17.24); Ao profeta Eliseu4 também se aplicou esse título com essa mesma acepção que une Palavra e Poder. Os profetas designados com o título homem de Deus se distinguem por não apenas denunciar o presente ou anunciar o futuro, mas também por sua capacidade de transformar miraculosamente a realidade em sua volta; são mensageiros divinamente autorizados e operadores de prodígios.
 
2.1.4. Profeta nabi’
 
Aparece 315 vezes na BH, sendo o termo clássico mais frequente usado para referir-se aos profetas; sua abundância de citações, no entanto, leva estudiosos como Sicre (2008,ps.81-90), depois de uma investigação de todas as suas ocorrências em todo Antigo Testamento, à várias conclusões sobre seu sentido, como segue. O título profeta não é de uso exclusivamente positivo, podendo ser aplicado até aos profetas de Baal, por exemplo, e/ou a quaisquer falsos profetas. Não obstante variem o sentido e a função do profeta ao longo da história, sua atividade predominante era a de comunicar a palavra de outra pessoa, a exemplo de Arão e Moisés, em Ex.7.1. O chamado profeta pode atuar sozinho e de forma independente ou em grupo, sendo esse último caso o mais antigo. Os profetas do Norte de Israel atuavam em torno do Rei, enquanto sua contraparte sulina profetizava em torno do Templo e junto aos sacerdotes, sendo por isso designados “profetas cultuais”. O profetismo bíblico não se mostra um fenômeno homogêneo5, podendo, segundo alguns estudiosos, ser classificado em grupos diferentes6. As mulheres podem fazer parte desse movimento - nebiah [profetisa;esposa de profeta]) - até com certo prestígio, uma vez que as mesmas não têm acesso ao sacerdócio7.
 
2.2. Os profetas como Pregadores Extraordinários
 
Os profetas do Israel antigo geralmente são vistos como homens que preveem o futuro8 imediato ou mesmo remoto de Israel e anunciam a vinda futura do messias e seu reino. Malgrado, os profetas bíblicos estavam mais interessados na situação do povo de Israel no momento em que viviam; falavam sobre o futuro relacionado com o presente e decorrente de acontecimentos contemporâneos a eles e a seus ouvintes; sua atenção e palavras, portanto, tinham como alvo a audiência que tinham diante de si e não pessoas de um futuro desconhecido pertencentes a outra economia de salvação9. Assim como os pregadores de nosso tempo, os profetas pregavam as verdades básicas de Deus ao povo; não eram como missionários aos infiéis, anunciando as verdades da salvação e a revelação a quem nunca as ouviu antes; também não eram pregadores dominicais que instruíam com o fim de levar o povo a uma vida fervorosa; para esses fins o povo tinha os sacerdotes, no Templo, e depois os rabinos, nas sinagogas. Antes, os profetas eram pregadores extraordinários levantados por Deus, esporadicamente, para pregar temas religiosos fundamentais e chamar de volta o povo a observância da Aliança em tempos de transgressão e crise religiosa.
 
2.3. O Problema do Pseudoprofetismo
 
No Antigo Testamento, podemos distinguir dois grupos pseudoproféticos: a) o dos profetas de divindades estrangeiras e/ou pagãos, como Baal; e b) o dos que alegam falar em no me de Yaweh. Os profetas de divindades estrangeiras carecem de importância, não obstante sua perniciosa influência eventual sobre o povo de Israel levando-os à idolatria (cf.1Rs.18). Já o segundo grupo, o dos pretensos profetas de Yaweh, é mais grave por sua falsa alegação de possuir uma revelação do Deus verdadeiro. Havia em Israel, assim, homens que pretendiam exercer a função profética sem terem sido de fato chamados por Deus para tanto (cf.Jr.23.21); e nem sempre era tarefa fácil distinguir entre profetas realmente chamados por Deus e seus pretensos porta-vozes10; nas palavras de Ellis (1995,p.251), “Então, como agora, não era tão fácil separar o falso do legítimo sobrenatural.”.
 
O verdadeiro profeta caracterizava-se, dentre outras coisas, segundo Ellis (1995,p.251), pela integridade, pela santidade de vida e pela coerência de sua pregação com o ensino de Moisés e, algumas vezes, pelo testemunho de milagres e o cumprimento de suas profecias durante sua vida. Monloubou (1986,p.77), ademais, aposta na homogeneidade ou continuidade como critério de verdade profética: “Homogeneidade – ou continuidade – na fé, na proclamação do único e verdadeiro Deus...Na história sobretudo;na concordância entre a Palavra e a realidade como o tempo a revela, aos poucos.”. Para Monloubou, a realidade profética se prende a uma verificação progressiva, no transcorrer do tempo, feita pela comunidade que no passar dos dias assim separa o falso do verdadeiro. Lacy (1998,p.270) nos apresenta um elenco de critérios veterotestamentários para distinguir o falso do verdadeiro profeta, como segue.
 
Critérios relacionados à Mensagem: a) o cumprimento ou não da profecia (cf.Dt.18.22;1Rs.22.28;Jr.28.9); b) a promessa de salvação ou o anúncio de juízo (Jr.28.8-9;Mq.3.5b); c) a forma da revelação:êxtase,sonho e espírito ou a não êxtase,não visão, não palavra (cf.Jr.23.25-28); d) Fidelidade ao Senhor ou apostasia dele (Dt.13.1-3;Jr.2.8,26,27).
 
Critérios relacionados ao profeta: a) institucionalização do ofício profético (cf.1Rs.22); b) conduta imoral (cf.Mq.3.11;Is.28.7;Jr.23.14;Mt.7.16); c) Convicção de ser enviados (Am.7.10-14;Mq.3.8)11. Martin-Achard (1992,p.30) apresenta sua síntese criteriológica e chega à mesma conclusão de Lacy – os critérios não são conclusivos12.
 
A dificuldade dos critérios, esboçada pelos citados estudiosos, aponta-nos para a complexidade que era distinguir entre o falso e o verdadeiro no oficio profético de falar em nome de Yaweh, no Israel antigo; contudo, o triunfo da Palavra de Yaweh anunciada aos e pelos profetas através dos séculos que se seguiram, bem como a conversão e comprometimento de um remanescente sempre fiel e obediente à revelação dada, dão prova de que, de alguma forma, tais critérios alcançaram seu objetivo geral de preservar a verdade e a Palavra do Deus de Israel.

Notas

1 Bibliografia especializada: ASURMENDI,Jesus.O Profetismo:das origens à época moderna.São Paulo: Edições Paulinas,1988;ELLIS,Peter F.Os Homens e a Mensagem do Antigo Testamento.São Paulo: Editora Santuário,1995;GONZÁLEZ BLANCO,Rafael.Los Profetas,traductores de Dios.Salamanca:Editorial San Esteban,2004; LACY,J.M.Abrego de.Os Livros Proféticos.São Paulo:Ave Maria,1998;MARTIN-ACHARD,Robert IN: AMSLER,S.;ASURMENDI,J.;AUNEAU,J.;MARTIN-ACHARD,R.Os Profetas MONLOUBOU,Louis.Os Profetas do Antigo Testamento.São Paulo:Paulinas,1986;SCHÖKEL,L.A.;SICRE DIAZ,J.L.Profetas I:Isaías,Jeremias.São Paulo:Paulinas,1988. SICRE, José Luíz.Profetismo em Israel:o profeta,os profetas,a mensagem. Rio de Janeiro:Editora Vozes,2008; KIRST,Nelson; KILPE,Nelson; SCHWANTES,Milton; RAYMANN,Acir; ZIMMER, Rudi.Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português.7ª.ed.São Paulo: Sinodal/ Vozes, 1996.
2 Peter Ellis observa,ibidem,pg.250,que Ex.7.1 apresenta-nos uma definição simples do que seria um profeta no mundo antigo: um homem que fala em nome de Deus, que é seu porta-voz, a exemplo de Moisés,Samuel, Natã,Amós e Oséias.
3
SICRE,ibidem,pg.75-76.
4 Outras tradições, como a de Is.38.1-8, falam do profeta como operador de milagres também.
5 Sicre,ibidem,p.90, diz que o profetismo bíblico não era homogêneo nem no que diz respeito à mensagem, nem às suas manifestações; talvez isso seja verdadeiro apenas no que se refere à sua manifestação, pois percebe-se um padrão e/ou unidade na teologia e mensagem geral de todos os profetas bíblicos. Cf.GRONINGEN,Gerard Van.Revelação Messiânica no Antigo Testamento.São Paulo:Cultura Cristã;GRONINGEN,Gerard Van.Criação e Consumação.São Paulo;Cultura Cristã; GRONINGEN,Gerard Van.O Progresso da Revelação no Antigo Testamento.São Paulo:Cultura Cristã,2006;KAYSER Jr.,Walter.Teologia do Antigo Testamento.São Paulo:Vida Nova,1984.
6D.E.Aune, citado por Sicre,ibidem,p.90,nota 106,classifica os profetas do AT em 1) profetas xamãs (Samuel,Elias,Eliseu); 2) profetas cultuais e do templo; 3) profetas da corte; 4) profetas por livre opção. Eichrodt,também citado por Sicre, faz distinção entre os videntes, o nebiismo e a profecia clássica.
7 PETER ELLIS,ibidem,p.251,observa que “(...) o chamamento divino para a função profética não se restringia a um determinado tipo ou grupo de pessoas. Eliseu era fazendeiro;Amós,pastor;Isaías,da classe alta;Jeremias e Ezequiel, sacerdotes. Também mulheres foram reconhecidas como profetisas. É o caso, por exemplo, de Maria,Débora e Holda.”
8De acordo com o especialista em profetismo José Luíz Sicre,ibidem,pg.74,nota 20, foi o termo grego profh/thj , que referia-se a um intérprete e/ou comunicador da mensagem da divindade aos homens, relacionado geralmente a algo futurístico, que nos trouxe o conceito do profeta como “aquele que prediz” ou que “fala do futuro”.
9 PETER ELLIS,ibidem,pg.249.
10 Martin-Achard,ibidem,p.30,define o problema do falso profeta em termos de “examinar a autenticidade do chamado do profeta e a legitimidade de sua missão".
11LACY,ibidem,p.270-271,entende que nenhum desses critérios, malgrado, se aplica sempre para distinguir com êxito a questão; cita por exemplo, o caso de profetas verdadeiros que somente a posteriori foram reconhecidos como tais, sendo antes do cumprimento de seus vaticínios vistos como falsos profetas – trata-se do problema do critério de cumprimento não ser, portanto, conclusivo, segundo ele. Para Lacy, portanto, “poderíamos continuar percorrendo todos os critérios, sem poder encontrar sequer um seguro”.
12 Foram propostos vários [critérios]:realização da profecia,atitude moral do porta-voz de Iaweh, sua posição perante as autoridades, a tradição, o povo etc.;nenhum deles foi decisivo e suficiente. (...) não é possível reconhecer a priori qual é o verdadeiro e qual o falso profeta, nem distinguir, sem risco de engano, a real testemunha de Iaweh da de seu falsário.”













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